Vazamento de petróleo no litoral do Nordeste: quatro anos depois a comunidade ainda denuncia a negligência do Estado

Pescador artesanal conta dos desafios de liderar uma equipe da comunidade para retirar o petróleo por conta própria, e afirma que manchas ainda são encontradas; coordenadora do Intervozes explica omissão da mídia durante a tragédia e na investigação

Por Andressa Franco e Patrícia Rosa

Imagem: Felipe Brasil

Em julho de 2023, o maior desastre por derramamento de petróleo cru do Oceano Atlântico Sul vai completar quatro anos. Trata-se do derrame de petróleo que atingiu mais de dois mil quilômetros do litoral das regiões Nordeste e Sudeste do Brasil em setembro de 2019. As investigações concluíram que o vazamento veio do navio petroleiro Bouboulina, da empresa grega Delta Tankers. Segundo o Ibama, mais de 5.000 toneladas de óleo foram retiradas pelo órgão até fevereiro de 2020.

As manchas foram encontradas em 11 estados brasileiros, de acordo com a Polícia Federal, que declarou em dezembro de 2021 que existem indícios suficientes de que o  navio grego tenha sido o responsável. O relatório da PF informa ainda que os custos iniciais para a limpeza das praias e oceano foram estimados em mais de R$188 milhões.  

Mas, para quem vive até hoje nas áreas atingidas pelo vazamento, as consequências de um dos maiores desastres ambientais registrados no Brasil permanecem. O derramamento do petróleo nos mares é um problema em grande escala, com prejuízos para a vida marítima e para as comunidades litorâneas. O pescador artesanal Gileno Nascimento, de 44 anos, morador de Barra de Serinhaém, um balneário na cidade de Ituberá (BA), lembra que a comunidade teve sua soberania alimentar ameaçada, e que não teve acesso ao Auxílio Emergencial Pecuniário pago aos pescadores afetados pela tragédia. 

“O poder público colocou uma venda para não ver a situação. Mas aquilo deixou um impacto muito grande para a saúde, como gente que não tinha pressão alta e passou a ter”, denuncia. Na época, a própria comunidade foi às praias retirar o petróleo por conta própria. Seu Gileno conta que não era incomum tonturas e vômitos durante o processo. “A gente escolheu combater o petróleo pois temos filhos e netos lá, a gente foi defender essa população”.

Apesar de todo o esforço, manchas de óleo ainda são encontradas nas águas. “Não sabemos se é daquela vez de 2019, mas a gente ainda está convivendo com isso”.

Gileno Nascimento, pescador artesanal, mostra mão com irritações depois do contato com o petróleo – Imagem: Arquivo Pessoal
Vozes silenciadas: omissão da mídia

Histórias como a de Seu Gileno não foram ouvidas e repercutidas pela grande mídia na época do crime. O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social lançou em 2020 a pesquisa “Vozes Silenciadas”, para analisar a abordagem dos principais veículos de comunicação no país.

Entre os principais dados levantados, o atraso de quase um mês na divulgação dos fatos pela mídia, tanto nos veículos de alcance nacional quanto regional. Além disso, em média 60% das vozes ouvidas foram de autoridades públicas e apenas 5% aproximadamente representavam os povos e comunidades tradicionais diretamente afetados.

Para a coordenadora da pesquisa e do Intervozes, Iara Moura, o principal impacto dessa demora se dá no cumprimento do compromisso da mídia com o interesse público, e no seu papel na cobrança e fiscalização do poder público.

“Como a mídia invisibilizou, nos primeiros 40 dias as medidas do governo federal foram ou inexistentes ou muito ineficazes. Só quando os grandes jornais passaram a estampar nas suas capas foi que o governo federal passou a tomar medidas mais efetivas”, explica a coordenadora.

“Faltou diversidade, apuração, dar voz aos principais impactados. Está no código de ética do jornalismo esse papel de cobrar do poder público respostas”, critica.

Também em 2020, foi criada a Campanha Mar de Luta, com o intuito de continuar levantando informações sobre os impactos do petróleo nos oceanos e seguir pedindo justiça para as comunidades. A iniciativa é de movimentos pesqueiros e de organizações de defesa aos direitos humanos e socioambientais, e tem o apoio do Greenpeace Brasil.

Iara Moura é coordenadora da pesquisa e do Intervozes – Imagem: Arquivo Pessoal

“Sobre as investigações, de novo a mídia não cumpriu seu papel”, pontua Iara, que também é mestre em comunicação. “Foi um jornalismo puramente declaratório. O que as autoridades espalhavam de desinformação em suas redes sociais, a mídia republicava sem apuração”.

Uma das notícias falsas mais repercutidas foi a tentativa de responsabilizar o Greenpeace, organização ambiental que atua no Brasil há 30 anos, tanto pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, quanto pelo ex-presidente Bolsonaro. Durante a 75ª edição da Assembleia Geral das Nações Unidas, Bolsonaro chegou a dizer que o óleo era venezuelano.

Além disso, as investigações entraram em segredo de estado. A coordenadora do Intervozes chama atenção ainda para a necessidade de medidas de reparação por parte do Governo Federal e órgãos de justiça. “A mídia mais uma vez silenciou sobre isso, esse crime tá dado como algo concluído, não se fala mais, sumiu esse tema”.

“Tínhamos duas opções: morrer de fome ou combatendo o petróleo”

Pesquisadores acreditam que toneladas de óleo “invisíveis” permanecem no ecossistema, e com o passar do tempo são cada vez mais difíceis de remover, levando décadas para se decomporem. Além do impacto ambiental, o contato direto de humanos com o piche também pode provocar irritações e processos alérgicos. Uma grande preocupação de Seu Gileno.

A contaminação pode ocorrer por ingestão, inalação ou absorção pela pele. Segundo pesquisadores da Fiocruz, a exposição pode provocar irritações na pele, rash cutâneo, queimação e inchaço; sintomas respiratórios, cefaleia e náusea; dores abdominais, vômito e diarreia. A longo prazo, a preocupação é com a ocorrência de câncer.

“Não foi a gente que derramou o petróleo, foi um crime ambiental. Mas, fizeram a gente de escravo para limpar a praia. Tínhamos duas opções: ou morrer de fome ou morrer combatendo o petróleo”, desabafa o neto e filho de pescador, que comandou uma equipe de 120 pessoas na comunidade para retirada do petróleo. Isso porque, os pescadores e marisqueiras da região passaram quatro meses sem poder pescar tanto para se alimentar quanto para comercializar. Mesmo depois de retomar a pesca, levou tempo até que as vendas voltassem ao normal, devido ao medo da população em relação à toxicidade do petróleo. 

Comunidade não teve acompanhamento na saúde

O pescador relata que depois do contato com a substância, a Secretaria de Saúde prometeu acompanhamento aos moradores que tiveram envolvimento direto com o petróleo, “e não foi envolvimento, foi combatendo o petróleo, o que não era da nossa competência.” Algo que, segundo conta, não aconteceu. “As secretarias deveriam fazer esse acompanhamento desde 2019. Se isso vier agora, já vem com atraso imenso”. 

Para Iara, na época, deveria ter se investido tanto na contenção do petróleo, quanto nas ações de comunicação para esclarecer à população sobre os cuidados no manuseio da substância. A coordenadora do Intervozes chama atenção ainda para as denúncias de adoecimento mental das marisqueiras, devido à violação do direito ao trabalho.

“São famílias inteiras em situação de insegurança alimentar e foi tudo potencializado pela pandemia da covid-19. Os impactos não cessaram e as medidas do estado brasileiro foram completamente irrisórias dada a profundidade dos problemas.”

Gileno aponta como o modo de vida das comunidades foi afetado. “Somos comunidades independentes. A gente produz nosso próprio alimento e somos responsáveis por 70% do pescado consumido nesse país. Tivemos nossa soberania alimentar ameaçada. Sobrevivi de esmola. Foi uma situação que nunca vivi.”

Além disso, estudos realizados pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) concluíram que mais de 80% da biodiversidade de invertebrados foi eliminada na área de estudo, com redução de 85% de organismos vivos por metro quadrado de praia. Esses dados também foram e ainda são observados pelos pescadores e marisqueiras depois que retomaram o trabalho.

“Algumas espécies de peixe não se encontram mais com facilidade nas beiradas. A gente sente falta de algumas espécies nos manguezais, e muitos corais morreram. Na área ambiental foi um prejuízo que não vai recuperar tão cedo, porque o petróleo continua chegando, em pequena escala, mas continua”, avalia o pescador. 

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