Nascida e criada na periferia de Belém, foi barrada todos os dias nos primeiros meses na Câmara porque não tinha ‘cara de vereadora’
Por Andressa Franco e Patrícia Rosa
Nascida e criada na periferia de Belém (PA), hoje, aos 35 anos, Lívia Duarte é vereadora da sua cidade. Eleita em 2020 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com 5.599 votos. “Eu estou vereadora de Belém, pois ninguém é o cargo parlamentar que ocupa”.
De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nenhuma das Câmaras Municipais das capitais brasileiras teve 50% de vereadoras eleitas. E Belém não foge da regra. Dos 35 vereadores eleitos, apenas 6 são mulheres, das quais 3 são negras. “Temos grandes candidaturas de mulheres, é importante e é bom que existam, mas ainda são a minoria disputando uma proporção, uma faixa”, comenta a vereadora.
Mas a vida política de Lívia carrega uma trajetória antes de ocupar a Câmara Municipal de Belém. Sua primeira experiência com a militância foi ainda na adolescência, contra o racismo. Ela recorda que, antes mesmo de conhecer o nome da luta, já fazia parte dela. Dos 13 aos 22 anos, viveu e atuou no movimento estudantil.
“Desde o movimento secundarista até a universidade, eu reivindico contra o racismo e luto pelo feminismo. A minha primeira experiência de impacto, o meu primeiro despertar foi, obviamente, em relação ao racismo. Pois eu o sentia de maneira mais violenta, para além da condição de classe, foi a condição de negra”, reflete.
A parlamentar fala com orgulho que é mãe do Joaquim, do Pedro, e madrasta da Clara. Para ela, a maternidade é um ponto crucial, também na vida política. Hoje casada, sendo seu filho caçula fruto desse casamento, aos 24 anos foi mãe solo. E com a maternidade despertou para outros caminhos da militância.
“É essa coisa de militar com o filho no braço. Eu precisava me destacar no meio de um monte de homens brancos e tinha que fazer o dobro de coisas com uma criança. Essa ebulição da exaustão, das tarefas, da jornada, desenhou um pouco esse perfil da militância da mãe negra e feminista”, comenta. A vivência com o racismo na infância levou a parlamentar à luta. “Não quero que eu e meus filhos vivamos em um mundo onde as pessoas chamam meu cabelo de ninho”, ressalta.
Início da vida política institucional
Quando se filiou ao PSOL, Lívia tinha 18 anos de idade e cinco de vida política. Antes disso, fazia parte da área de influência do Partido dos Trabalhadores (PT). “Eu não era filiada ao PT, mas estava ali militando junto com a galera. Eu demorei muito pra me filiar e entender que era necessário. Minha primeira organização era popular, então eu entrei no PSOL de maneira formal”.
Lívia, que fundou o Setorial de Mulheres do PSOL do Pará, define sua entrada na política institucional como uma progressão aritmética. Entre os Projetos de Lei que apresentou, está o PL para receber o projeto piloto na Unidade de Educação Infantil (UEI) Wilson Bahia de Souza, localizada no bairro do Curió-Utinga, na zona leste de Belém. Aprovado em setembro de 2021.
“Isso faz parte da minha vida e muito tem a ver, por exemplo, com o fato de estar numa reunião aos 24 anos com um monte de homens de 50 e eles não se tocarem da necessidade de ter um espaço de creche naquele espaço de reunião. Eu sei que a creche noturna vai beneficiar as mulheres pretas da periferia, que não têm babá para sair à noite para estudar ou trabalhar”.
Papel da Bancada Feminista
Para Lívia, a representatividade e a coletividade são pontos que levantam a importância de ocupar a Câmara de Vereadores. “Eu falo sempre que sou um elo. Quero que as meninas que moram na periferia, assim como eu nasci e cresci, que estudam em uma escola pública, que elas possam dizer ‘amanhã eu vou ser uma vereadora’ porque hoje eu sou vereadora”.
E justamente por não ver rostos como o seu ocupando espaços decisórios, que recebeu com surpresa a ascensão ao posto de primeira presidente negra de partido político no estado do Pará, pelo PSOL, em 2015. “Em uma cidade onde a maioria da população se autodeclara negra, fui a primeira presidenta negra. Com isso, você vê a desproporção dos espaços de poder e das condições de acesso quando a gente fala de mulheres negras”, declara.
Desafios
O sentimento experienciado pela parlamentar com sua presença enquanto vereadora, é de estranheza, e não pertencimento. Mesmo eleita com mais de cinco mil votos, Lívia teve sua entrada negada na Câmara nos primeiros meses após assumir a cadeira.
“É totalmente estranho, não é um espaço feito e imaginado para nós. Nos primeiros dois meses, fui barrada todos os dias porque eu não tinha ‘cara de vereadora’. Eu me sinto todos dias arrombando uma porta, fissurando uma parede e com o pé em uma janela”, desabafa.
O Estatuto da Igualdade Racial municipal, foi um dos projetos apresentados pela vereadora, e aprovado em fevereiro deste ano, gerando expectativa de ampliação de políticas públicas municipais no combate ao racismo na cidade.
A proposta de criação do projeto surgiu de uma articulação do movimento negro local, depois da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial do Estado do Pará, que se configura como o primeiro Estatuto Estadual aprovado na Região Norte, por unanimidade. O movimento então se mobilizou pela implementação do Estatuto de Igualdade Racial na cidade de Belém.
Cenário atual: de Belém ao Brasil
‘Repugnante’ é como Lívia define a atual conjuntura do Brasil, que ultrapassa 650 mil mortes em decorrência da pandemia de covid-19. No estado do Pará, foram 17.904 óbitos, de acordo com dados do Consórcio de Veículos de Imprensa coletados a partir de dados das Secretarias Estaduais de Saúde do País.
“O país hoje tem mostrado sua face, acho que é um dos capítulos mais cruéis da história do Brasil, com poucos episódios de comparação. Uma nação governada como se fosse uma 5ª série, por moleques. Estamos falando de genocidas, racistas e machistas declarados. No estado do Pará hoje a gente tem um governo do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), e Bolsonaro é tão caótico que um governo minimamente civilizado parece não ser tão ruim”, diz em referência ao governador do estado, Helder Barbalho.
A taxa de desemprego no Brasil reduziu 11,1% no encerramento do trimestre em dezembro de 2021, mas ainda assim o número de pessoas sem trabalho chega a 12 milhões, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Alguns grupos da esquerda no Brasil falam em greve geral, mas ela já se deu, as pessoas estão desempregadas. Às vezes me bate um desespero e a gente tem que se apegar muito nas que vieram antes de nós, na história das mulheres que nos trouxeram aqui. Isso é o que me faz levantar toda manhã e ir à luta, partir pra cima. Eu sei que não tenho o direito de sucumbir e de me abster, não tenho direito de voltar pra casa”, finaliza.