“60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras”
Racionais MC’s
Por Clíssio Santos Santana*
Imagem: Library of Congress, Prints and Photographs Division
No dia 13 de maio de 1888, foi assinada a Lei Áurea colocando fim jurídico ao regime escravista no Brasil, último país a abolir a escravidão nas Américas. Mas, conjuntamente com a Lei, não foi pensado pelo Estado brasileiro, ou pelo menos colocado em prática, nenhum projeto de inserção e reparação para a população recém egressa do cativeiro e seus descendentes. Os dias seguintes ao 13 de maio tornaram-se um misto terror e de uma felicidade carregada de insegurança e violência.
Pouco mais de um ano após o fim do cativeiro, o Brasil deixou de ser um Estado monárquico e tornou-se uma República. O novo regime buscou criar a todo custo um ambiente com ares modernos na tentativa de criar uma identidade política do recém-regime, mas nenhuma alternativa foi estabelecida para resolver os problemas dos egressos da escravização. Pelo contrário, a questão foi tratada como algo do passado e fruto do suposto atraso do regime imperial. Ou seja, nessa visão, as mazelas deixadas pela escravização na economia, na politica, nas relações raciais teriam sido apagadas. Por outro lado, quando analisamos a documentação da época, percebemos que os conflitos silenciosos do cotidiano estavam fortemente marcados pelas “heranças”, práticas racistas e costumes escravistas que perduram nas nossas vidas.
Era 17 de outubro de 1897, quase dez anos após a abolição da escravidão, o jornal O Aratuhype deu “notícia odiosa” envolvendo Manoel Jacinto Pereira do Lago e o “preto velho Faustino Barbosa Britto”, ambos moradores da cidade de Jaguaripe no Recôncavo Baiano¹. A disputa tinha como pano de fundo a tutela do sobrinho de Faustino, o mentecapto (pessoa com deficiência intelectual) José Anastácio. Este tinha sido escravizado por Maria Elvira Muniz Lacerda, na fazenda Conceição da Cavala e foi liberto pela Lei de Treze de Maio. Após a Liberdade, o rapaz decidiu abandonar a fazenda de sua ex-senhora e passou a viver como livre de fato e de direito. Vivendo em companhia de Manoel Jacinto Pereira do Lago, um lavrador mediano. Após três anos de convivência e exploração do trabalho sem nenhuma remuneração, Manoel Jacinto Pereira do Lago tornou-se tutor legal do jovem em 1895. Na petição endereçada ao juiz, afirmou ofertar abrigo, comida, cuidados médicos e tudo mais que necessitasse sem nada cobrar em troca, tudo de boa vontade e compaixão. Por outro lado, não era o que acontecia. Vejamos.
Ainda incomodado com a situação do seu sobrinho, o preto velho Faustino Barbosa Britto denunciou ao promotor público os maus tratos sofridos pelo jovem. Segundo a petição de maio de 1897, Anastácio estava com uma grave ferida nas costas e no quadril, possivelmente oriunda de castigos, que “chegou a dar bichos e foram extraídos por caridades por outros cidadãos”. Uma das testemunhas do processo afirmou que Anastácio sobrevivia em péssimas condições, trabalhava em qualquer serviço e “quando todos os trabalhadores iam embora ele continuava trabalhando” na roça , sem descanso, conforto ou dignidade. Outra testemunha relatou que sempre o via “com fome e andava descalço e sem chapéu”. Suas vestes eram velhas e rasgadas, seu local de dormida era no chão perto do forno do lado de fora da morada do seu tutor.
Passados mais de dez anos da Lei que garantia sua liberdade, José Anastácio estava mais quer cansado de sua condição de sobrevivência, e possivelmente apoiado pelo tio, fugiu e foi buscar abrigo na casa do seu parente. Esse ato do rapaz, que até o momento permanecia bastante obediente, não foi aceito com bons olhos por Manoel Jacinto, que elaborou outra petição solicitando que José Anastácio fosse “capturado e conduzido à presença dele”.
O processo não revela se Faustino (tio) ou outros familiares eram libertos do 13 de Maio, tampouco se o vínculo de tio era da parte materna ou paterna. Por outro lado, pela idade avançada – “Preto Velho” –, mesmo não tendo vivenciado a experiência da escravização, Faustino sabia muito bem o que significava viver naquelas condições em que seu sobrinho permanecia. Além disso, fica claro que a relação que Jacinto Pereira do Lago estabelecia com o liberto José Anastácio tinha como base as práticas, costumes e condutas escravistas. Essa lógica fica evidente na petição de busca e apreensão, na qual Jacinto ordena que José Anastácio fosse “capturado e conduzido à presença dele”. Para a felicidade do tio e sobrinho, no dia 25 de novembro de 1898, o processo foi arquivado pelo falecimento de Manoel Jacinto Pereira do Lago, e José Anastácio seguiu em companhia do seu tio Faustino, trilhando novos rumos de vida e liberdade. liberdade.
A escravização enquanto instituição largamente difundida deu liga às práticas cotidianas assentadas nas hierarquias socioeconômicas e raciais, típicas das sociedades escravistas e pós-escravistas das Américas. Os senhores e ex-senhores combinavam forças e incentivos, segundo os costumes locais e a tradição, seguindo imperativos morais ou culturais numa série de arranjos. A sociedade escravista baiana brasileira moldou condutas, definiu hierarquias sociais e raciais, forjou sentimentos, valores e etiquetas de mando e obediência que perduraram além dos tempos da escravização.
Esses homens e mulheres de cor também possuíram suas próprias visões, memórias e lembranças da escravização e as suas próprias concepções do que seria a liberdade. A todo custo buscaram, mesmo que de maneira precária, conquistá-la, afirmá-la e protegê-la, mesmo que fosse entre aqueles que, em tese, seriam seus pares. Não só a escravização tinha o seu peso, a liberdade também possuía e possui o seu fardo. Defendê-la significava, e significa, aprender a conviver com as tragédias que marcavam e demarcavam cotidianamente as hierarquias raciais e sociais.
Esse caso indica o quanto as práticas e os costumes escravistas continuaram enraizados na sociedade baiana e brasileira nos dias seguintes à abolição da escravização.
Era fim dos anos 90 quando os Racionais MC’s, invadiam as casas das periferias de todo o Brasil através das fitas K7, denunciando o racismo e a violência policial. O cenário era triste, mas muitos meninos e meninas negras entenderam que o Estado se organizava para matá-los, que não era uma coincidência e sim um projeto. Hoje em 2022, após finalizar esse texto tenho 75% de chance de não voltar pra casa, “ a cada 4 pessoas mortas, 3 ainda são negras”. Bom dia seguinte.
1Arquivo Público do Estado da Bahia, doravante APEB. Setor Judiciário. Processo cível: 65/2341/08 /Fl. 34. Jaguaripe 1897. Uma versão adaptada desse texto fou publicada: http://www.bvconsueloponde.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=199 . Acesso em 08/05/2022.