Um dos muitos casos de homens errados: uma análise do documentário O Caso do Homem Errado (2018)

O filme O caso do homem errado (2018), dirigido pela cineasta Camila de Moraes, recupera o caso de assassinato do operário negro Júlio César de Melo Pinto, que foi executado em Porto Alegre pela Polícia Militar, em 1987, época em que o país estava retomando seu processo de democratização. Após um assalto com reféns em um supermercado no centro da

Por Lecco França*

 

Morri tantas vezes, mas nunca me matam de uma vez por todas. Meu sangue é semente que o vento enraíza no ventre da terra e eu nasço de novo” (poema ‘Na noite calunga do bairro Cabula’, de Ricardo Aleixo)

 

O filme O caso do homem errado (2018), dirigido pela cineasta Camila de Moraes, recupera o caso de assassinato do operário negro Júlio César de Melo Pinto, que foi executado em Porto Alegre pela Polícia Militar, em 1987, época em que o país estava retomando seu processo de democratização. Após um assalto com reféns em um supermercado no centro da capital gaúcha, houve troca de tiros entre a polícia e os assaltantes. A movimentação resultante deste fato atraiu a atenção de muitos populares, entre eles, o jovem Júlio César. Na ocasião, Júlio sofreu um ataque epilético e caiu no chão. Em vez de ser socorrido, ele foi acusado de ser um dos assaltantes. Assim, foi jogado na viatura, apanhou e seria conduzido à delegacia. Entretanto, ele chegou ao hospital morto com dois tiros. Júlio foi considerado criminoso e posteriormente assassinado pelo simples fato de ser negro, já que o discurso racista considera que qualquer pessoa negra é ou pode ser criminosa. Na época, o episódio teve grande repercussão desencadeada pela imprensa. Graças à iniciativa do repórter fotográfico do Zero Hora, Ronaldo Bernardi, que perseguiu o carro da polícia, e registrou Júlio, vivo, ao entrar na viatura, e morto, ao chegar ao hospital, foi possível comprovar que o operário negro foi havia sido executado a tiros no caminho, o que levou o caso a julgamento.

Para reconstruir a trama, que dialoga com os inúmeros casos de genocídio da população negra que se perpetuam no Brasil, muitos também cometidos pelo Estado, a roteirista e diretora teve acesso a reportagens da época e colheu depoimentos muito significativos. Como o do próprio Ronaldo Bernardi, o da viúva do operário, Juçara Pinto, e de nomes respeitados da luta pelos direitos humanos e do movimento negro no Brasil, para desvelar e denunciar a responsabilidade do Estado e conivência de muitos que fazem parte de instituições, como a polícia, na morte de Júlio e de tantas outras pessoas negras ao longo da história. Como revela um dos depoentes na trama “Agora mesmo tem um Júlio César assassinado pelo Estado”, cuja morte não será investigada ou as provas serão adulteras, no intuito de comprovar, ou melhor, produzir algum crime cometido pela vítima e isentar a culpa dos policiais. Nesse sentido, o título da obra chama atenção para a ideia de ética e justiça (no caso, a ausência) por parte da instituição (Polícia Civil): se Júlio foi o homem errado, haveria o certo? Se a pena de morte não é (e nunca foi) legalmente permitida no Brasil, por que ela continua sendo realizada de forma contra as pessoas negras, independente de terem cometido algum crime ou não?

Segundo o último Atlas da Violência, divulgado em 2018 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de homicídios entre negros cresceu mais de 23% entre 2006 e 2016, enquanto os assassinatos de pessoas não negras diminuíram 6,8%. Pelas memórias de Júlio César, de Mariele Franco, de Moa do Katendê, de Amarildo Souza, de Adriano de Souza Guimarães, Jeferson Pereira dos Santos, João Luís Pereira Rodrigues,  Bruno Pires do Nascimento, Vitor Amorim de Araújo, Tiago Gomes das Virgens, Caíque Bastos dos Santos, Evson Pereira dos Santos, Agenor Vitalino dos Santos Neto, Natanael de Jesus Costa, Ricardo  Vilas Boas Silva, e Rodrigo Martins Oliveira, os jovens assassinatos na chacina do Cabula, entre tantos outros. Em uma época como a tal, incentivada pelo “faça justiça com as próprias mãos”, “tenha a sua arma para sua defesa”, “um PM de arma em punho é como um artilheiro em frente ao gol”, o perigo de casos como este serem cada vez mais recorrentes amplia-se assustadoramente. Por isso, o primoroso trabalho investigativo e a maneira como amarra os fatos da trama tornam esta obra de Camila de Moraes necessária, para além de outras estratégias de sobrevivência e de denúncia protagonizadas por pessoas negras.

Atualmente o filme entrou no catálogo da SPCine Play, de forma gratuita, e na Globoplay, disponível para assinantes. Em depoimento em sua rede social Instagram, a diretora comentou sobre os desafios e conquistas para quem faz distribuição independente de filmes no Brasil. Desde que foi lançado no circuito comercial, em 2018, o documentário foi exibido em salas de cinema de diversos estados do país, assim como circulou por outros dezoito países da América Latina, através da Google Play e iTunes.

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