Por Iago Gomes*
Discussões acerca de uma Educação que condicione o adjetivo antirracista à prática escolar têm sido mais comuns desde a aprovação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornam obrigatório o ensino de Cultura e História Africana, Afro-brasileira e Indígenas nas escolas de ensino fundamental e médio de toda Rede Pública e Privada. Cito mais comum, pois o pensar uma educação voltada aos povos originários e negros no território nacional não é algo novo, contemporâneo, mas remete a lutas históricas dos movimentos negros, inclusive do período oficial da colonização escravocrata e dos movimentos de povos indígenas. Também não podemos abrir mão de incluir a importância da Lei 12.711/12, a Lei de Cotas, responsável pelo aumento de pessoas negras no universo de pesquisa e retorno pedagógico à Educação. Apesar de variadas formulações no campo teórico e de metodologias pedagógicas no campo prático, discussões a partir da epistemologia da palavra antirracismo devem ser ampliadas para um campo que apresente a sua significação atrelada à diversidade de pensamento intelectual negro e não um bloco monolítico, de características rígidas e imutáveis como formula Lélia Gonzales em Lugar de Negro. A homogeneização das formulações negras também diz muito sobre o racismo entranhado nas relações sociais e acadêmicas e deve ser combatida também no campo da crítica. Por esse motivo optei pelo uso do termo “antirracista” neste trabalho e não outro que já carregue um viés exclusivo de abordagem, pois aqui apresentarei uma diversidade de pensamentos que me ajudaram a pensar, construir e colocá-lo no plano da ação.
Dentro da simbiose escola-educação-sociedade, o chão de análise histórica é a materialidade Brasil. Tomar como ponto de partida a escravidão-Colônia e todas as relações que ela implica no durante e no pós, afinal o fim datado das relações com a metrópole Portugal não implicou um rompimento cultural com essas relações, ao contrário elas seguiram a ser firmadas no plano das relações sociais e muitas fortalecidas a partir de um revestimento implícito de manutenção de poder. A insistência de firmar os lugares de classe, sociais e raciais, é algo que perpassa por todas as etapas históricas pós-coloniais, como Lélia Gonzalez analisa:
“As condições de existência material dessa população negra remetem a condicionamentos psicológicos que devem ser atacados e desmascarados. Os diferentes modos de dominação das diferentes fases de produção econômica no Brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a reinterpretação da teoria de lugar natural de Aristóteles. Desde a época aos dias de hoje, a gente saca a existência de uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas, etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa-grande e do sobrado, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: o da divisão racial do espaço.”
Se essa divisão racial do espaço se deu para manutenção de uma ordem social, política e econômica e se compreende o Estado como o mediador dessa divisão, a escola, que foi a instituição criada e é cultivada pelo Estado como simbiótica à Educação na contemporaneidade, também é um espaço que cultiva e promove essa divisão de espaço racial, o que poderia chamar também de Hierarquização dos Corpos e do Conhecimento a partir de Sueli Carneiro. Ela, portanto, em si já é um espaço dividido por essa lógica, mas como Gonzalez afirma é através da imposição de uma submissão psicológica, que é repressiva também, que se alcança um impedimento de organização dessas classes oprimidas e logo um benefício estrutural ao sistema econômico.
Com isso é preciso recuperar diversos pontos que a Colonização-Escravidão desenvolveu como marca histórica nos mesmos sujeitos (que contrariando a imposição da ordem alcançou o direito de acessar à escola através de lutas coletivas, por exemplo) como a limitação crítica imposta a partir do autoritarismo e da autoridade exercida sobre os corpos. Como assinala Paulo Freire: “Assim vivemos todo o nosso período de vida colonial. Pressionados sempre. Quase sempre proibidos de crescer. Proibidos de falar. A única voz, no silêncio a que éramos submetidos, que se poderia ouvir era a do púlpito. As restrições às nossas relações, até as internas, de capitania para capitania, eram as mais drásticas. Relações que, não há dúvida, nos teriam aberto possibilidades outras no sentido das indispensáveis trocas de experiências com que os grupos humanos se aperfeiçoam e crescem.” (Freire, 2019, p. 101)
Consideráveis críticas dos movimentos negros às abordagens educacionais são direcionadas à tomada histórica da escravidão como ponto de partida de tudo que se direciona à racialização de não-brancos, o que parece anular que há experiências para além da violência humana a que o povo diásporo e nativos foram submetidos. Não podemos silenciar as narrativas outras de nossas abordagens escolares, parafraseando Freire é preciso enraizar o homem que se encontra desenraizado, sem endereço e que por isso se identifica com formas míticas de explicação de seu mundo.
Para que a escola se efetive como uma comunidade de aprendizado é preciso tomar experiências e leituras diversas como base, principalmente na inserção das necessárias contribuições no campo da produção antirracista, incluindo assim as produções intelectuais negras em seus conteúdos, práticas pedagógicas e reestruturações do modelo educacional. A tomada de consciência necessária é que não existe um modelo pronto. A Academia, que muitos acreditam ser um polo base de construção de conhecimento, deve ser criticada em suas características constituintes não entusiasmantes, como desenvolve bell hooks em Ensinando a transgredir – A educação como prática da liberdade. O ambiente acadêmico pode carregar em sua estrutura a seriedade da atividade intelectual, mas é preciso a coexistência dessa qualidade ao entusiasmo, uma reinvenção, também metodológica, da relação ensino-aprendizagem e que rompa os muros que a cercam. bell hooks diz que: “Ressaltam que o prazer de ensinar é um ato de resistência que se contrapõe ao tédio, ao desinteresse e à apatia onipresentes que tanto caracterizam o modo como professores e alunos se sentem do aprender e do ensinar, diante da experiência da sala de aula.”
É preciso pensar a Escola como esse ambiente paradoxal, cheio de contradições e uma delas é o distanciamento como sujeito do ambiente de produção acadêmica, lugar que se ocupasse pode gerar outras possibilidades de saída para seus problemas comuns. Não dá para enxergar a Escola Básica como mero lugar de objeto científico, mas como base de transgressão de relações e reinvenção do mundo sem abrir mão de um olhar crítico aos seus conflitos e a sua inserção numa ordem capitalista, como lugar de tensões de classe, raça, gênero, sexualidade, regionalidade, etc.. Efetivar o lugar do ensino-aprendizagem como base espacial de construção de relações Outras parece não ser base para muitos estudos antirracistas, como se não fosse possível o desenvolvimento de perspectivas de reflexão-crítica à cerca de experiências e papéis que as racialidades implicam no desenvolvimento da humanidade, e mesmo passando por uma crise permanente da Educação, fico com as contribuições de bell hooks e suas afirmativas diretamente influenciadas por Paulo Freire de que esse lugar é digno de consideração, a sala de aula (não compreendendo-a no sentido espacial do termo) é um dos lugares que mais oferece radicalidade e, portanto, possibilidades reais de transformação, de transgressões, obviamente sem ignorar o fato das escolas serem instituições do Estado e que por isso também responsáveis por reproduzir e condicionar a reprodução de opressões e modelo de exploração, sem, no entanto, ser vista como um lugar de total ausência de conflitos por forças que enxergam nela a possibilidade de rupturas.
Necessário pensamento crítico-reflexivo permanente à cerca da educação escolar, sobretudo na sua materialidade, que é caracterizada por uma sociedade de classes a serviço de uma elite econômica e política, sendo essa elite também racial vinculada a uma colonização-escravocrata, ela serve a bases raciais moldadas historicamente no Brasil e no Sistema-Mundo, e sem essa noção consciente é impossível compreender os processos que se desenrolam hoje nas relações e consequentemente não perceber a necessidade de disputar a Educação Básica como um lugar de emersão de intelectualidades rebeldes.
*Professor e Cria da Escola Pública da Bahia, Militante Antirracista e Anticapitalista e Criador de Conteúdo
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural / Silvio Luiz de Almeida – São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaira, 2020.
CARNEIRO, Aparecida Sueli; FISCHMANN, Roseli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001465832 Acesso em: 15 set. 2020.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade / Paulo 45ª ed. – São Paulo: Paz e Terra, 2019.
GONZALES, Lélia. Lugar de negro. Lélia Gonzales e Carlos Hasenbalg. – Rio de Janeiro: Marco Zero. 1982.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade / bell hooks; tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – 2. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017