Por uma Semiótica Antirracista

Os estudos da Semiótica têm origem na produção científica dos países nórdicos, tendo na produção de Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Peirce marcos fundamentais que influenciaram a construção de um campo em torno do estudo dos signos. A Comunicação, a Cultura e a Literatura foram as áreas de conhecimento fundamentalmente beneficiadas pelo

Por Bruna Rocha* e Cássio Santana**

Os estudos da Semiótica têm origem na produção científica dos países nórdicos, tendo na produção de Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Peirce marcos fundamentais que influenciaram a construção de um campo em torno do estudo dos signos. A Comunicação, a Cultura e a Literatura foram as áreas de conhecimento fundamentalmente beneficiadas pelo surgimento da nova ciência que se propôs a analisar a dinâmica dos signos na produção de sentido e na construção de linguagens que mediam o mundo social.

Este artigo é resultado da experiência desenvolvida no curso Racismo e Mídia no Brasil: uma abordagem semiótica, iniciativa da plataforma Semiótica Antirracista com o objetivo de aproximar os conceitos e operadores teórico- metodológicos da Semiótica dos anseios e reivindicações históricas dos movimentos antirracistas, dos estudos sobre raça e gênero, sobretudo para pensar o racismo midiático e sua possível desconstrução.

 

Racismo estrutural e a dimensão simbólica

O racismo é um processo histórico estrutural (ALMEIDA, 2019) que divide socialmente as pessoas a partir do fenótipo, atribuindo-lhes valor moral baseado em relações de poder. O racismo foi a base ideológica do escravagismo, cujo modelo disseminado e transformado em matriz econômica da experiência colonial é a herança direta das democracias modernas. Por isso, as formações sociais e discursivas (FOUCAULT, 2008) do racismo seguem operando mesmo na república e se reproduz nas relações individuais mas, sobretudo, nas circunstâncias sociais de profunda desigualdade e violência para pessoas negras e não-brancas.

Enquanto processo histórico, o racismo estrutura também a cultura e toda sorte de relações simbólicas e materiais que ela comporta. Neste sentido, a produção midiática hegemônica opera com signos racistas e a desnaturalização destes símbolos sempre ficou a cargo dos movimentos negros e antirracistas. Na academia, as ciências sociais vêm se debruçando sobre o tema, assim como os Estudos Culturais, especialmente a partir da contribuição de Stuart Hall. Acreditamos que a pesquisa em Semiótica pode e deve se engajar mais na investigação dos fenômenos culturais racialmente determinados, pois dispõe de ferramentas importantes para o manejo das complexidades e diversas camadas que o racismo apresenta, especialmente no Brasil, onde sua principal forma social é conhecida por “mito da democracia racial”.

 

Racismo em signos: caminhos para a desconstrução dos sentidos

 Pensamos a discussão sobre o signo triádico de Peirce à luz dos estudos sobre representação, estereótipos e imagens de controle, respectivamente realizados por Hall (2016), hooks (2019) e Hill Collins (2016). Recorremos à exemplos de representações midiáticas para ilustrar as múltiplas camadas com que o racismo estrutura o imaginário social, suas nuances e complexidades. A relação dinâmica e móvel entre objeto, representamen e interpretante parece-nos uma chave analítica para aprofundar o estudo sobre os processos de significação que estruturam os estereótipos, as imagens de controle e as representações. Parte-se do pressuposto que a desconstrução do racismo e o seu combate político não pode prescindir destas ferramentas teóricas e analíticas que a Semiótica pode oferecer. Neste sentido, nosso trabalho não apenas busca chamar a atenção do campo da pesquisa semiótica para a centralidade do problema teórico e político do racismo, como também representa um esforço em convidar a comunidade negra e os movimentos antirracistas a se apropriarem dos estudos semióticos no sentido de qualificar o debate público de combate ao racismo.

O cotidiano, enquanto dimensão fundamental da vida social, é um objeto imprescindível para pensar o funcionamento semiótico do racismo. É no cotidiano que as violências, legitimadas e institucionalizadas nas estruturas, operam a manutenção da desigualdade racial. Por outro lado, existem tensões e resistências. Práticas sociais são, a todo momento, questionadas, e há reverberação na semiose, ainda que de maneira lenta e assimétrica. Estas tensões proporcionam fissuras nas formações discursivas hegemônicas, abrindo brechas para a possibilidade de novas formações discursivas. O renascimento dos símbolos do movimento “Black Phanter” e toda a mobilização antirracista da contemporâneidade são exemplos disso, bem como todo o movimento pelos direitos civis nos anos 70. No entanto, outros desafios se impõem nos processos de disputa, desde a sofisticação da violência racial para formas aparentemente mais brandas, até a apropriação da pauta por setores conservadores e pelo grande Capital – movimentos que desidratam politicamente a luta antirracista, esvaziando-a em falas míticas que a transformam em mercadoria.

 

A importância da Semiótica para uma cultura antirracista

Ainda com os avanços, a luta antirracista segue enfrentando árduos obstáculos. Além do renascimento de ideologias ultraconservadoras representadas, sobretudo pelos governos do Brasil e Estados Unidos, o fenômeno da dataficação e o poder cada vez mais incontornável dos algoritmos tem prejudicado muito a correlação de forças sociais, políticas, econômicas e simbólicas para os movimentos progressistas pró-direitos humanos e igualdade racial. O mesmo ambiente – a internet – que viabiliza a emergência de vozes, narrativas e movimentos contra-hegemônicos, inclusive a mobilização de campanhas antirracistas como a Black Lives Matter15, também é cenário para o aprofundamento do capitalismo de dados e da reprodução de padrões racistas, sexistas e altamente perversos de estratificação social. A hierarquia segue consistente entre quem pode falar e quem não pode, a partir da desigualdade do alcance e da distribuição dos conteúdos disponíveis nas redes – isto sem falar na abissal desigualdade no acesso aos dispositivos e habilidades técnicas para lidar com o ambiente digital.

Pensar uma semiótica antirracista, portanto, vai além dos velhos problemas de construção do sentido nos textos midiáticos, e se depara com o desafio de lidar com uma sociedade cada vez mais mediatizada e mediada por estruturas não-discursivas – como os algoritmos. Além de um problema teórico potente e sub-explorado do ponto de vista semiótico, combater o racismo e todas as formas de desigualdade deve ser tomada como uma responsabilidade por toda a comunidade científica que se vê ameaçada pelo obscurantismo político e autoritarismo econômico do capitalismo de dados. Acreditamos que a Semiótica pode cumprir um papel estratégico e singular na conjuntura onde os discursos, as imagens e as linguagens ocupam, mais do que nunca, um espaço fundamental na mediação das relações de poder e nas disputas entre velhas e novas formas de vida.

 

*Bruna Rocha é jornalista, mestra em Comunicação e Culturas Contemporâneas (UFBA), idealizadora e CEO da plataforma Semiótica Antirracista.

**Cássio Santana é jornalista, doutorando em Comunicação e Culturas Contemporâneas (UFBA), um dos fundafores e CFO da plataforma Semiótica Antirracista.

Este artigo é um resumo do artigo científico produzido como sistematização do minicurso Racismo e Mídia no Brasil: uma abordagem semiótica, que será em breve disponibilizado para leitura.

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