Cinco anos depois, Marcha de Mulheres negras deixou como legado desafios e defesas para as narrativas de mulheres negras

Quando na manhã de 18 de novembro de 2015 milhares de mulheres negras marcharam pelas ruas de Brasília contra o racismo e a violência e pelo Bem Viver, quem esteve ou não presente sabia que ali estava sendo escrito um importante capítulo na história social brasileira.

Por Juliana Dias

Quando na manhã de 18 de novembro de 2015 milhares de mulheres negras marcharam pelas ruas de Brasília contra o racismo e a violência e pelo Bem Viver, quem esteve ou não presente sabia que ali estava sendo escrito um importante capítulo na história social brasileira. Cinco anos depois, o movimento político reverbera e se intensificou em diversos setores da sociedade, especialmente pelos impactos que as narrativas de mulheres negras têm causado on-line e off-line.

Ainda em 2015, as 100 mil mulheres que estiveram na capital federal apresentaram ao país um projeto político revolucionário baseado numa ampla agenda de direitos considerada prioritária. Essa agenda pautada em questões que envolvem saúde, educação, fim das violências, poder político, entre outros pontos, acolhe não só as 50 milhões de mulheres negras que vivem no Brasil, mas toda a sociedade.

Essas “insubmissas”, como Conceição Evaristo conceitua as mulheres, estão espalhadas e organizadas em diversas áreas da sociedade: na música independente, que mergulha numa cura através do amor; no sacudimento da estrutura político-partidária de direita e de esquerda, como as sementes de Marielle Franco no processo eleitoral; na recusa pública dos ensaios de apropriação intelectual e literária de mulheres negras; e na incessante exposição das práticas de misoginia, machismo e racismo, muitas vezes, mascaradas pela preposição “anti”.

Para Sueli Santos, da Rede de Mulheres Negras da Bahia, os impactos da marcha estão sendo observados agora e, dentre eles, está o desafio de convergir as narrativas de mulheres negras. “Precisamos garantir a permanência de diálogo entre as duas principais expressões do movimento de mulheres negras: o feminismo negro e o mulherismo”.  Ainda de acordo com ela, ambas possuem mais coincidências do que diferenças. “Para mim, embora exista um aparente conflito entre essas correntes, ambas adotam as mesmas narrativas de empoderamento, autonomia e independência da mulher negra, apesar de trazerem em seu bojo visões diferenciadas do lugar e da presença do homem negro na luta contra o machismo e sexismo”, completa Sueli Santos.

Sueli Santos na Marcha de Mulheres Negras em Brasília, em 2015.

É a partir da presença afrontosa nos mais diversos espaços e setores da sociedade pautando a necessidade da equidade racial e de gênero que as mulheres negras estão fazendo as disputas mais caras. “Estamos no meio de uma revolução” alerta a socióloga Vilma Reis, que lidera o movimento político “Agora é ela”, lançado em julho de 2019 e que pauta maior presença de mulheres negras dentro dos partidos políticos e nos espaços de poder e decisão. O movimento, iniciado na Bahia, contribuiu para um ano de eleições municipais marcado pelo recorde de candidaturas de mulheres e, pela primeira vez, mais candidaturas negras do que brancas.

“Chega de homem branco mandando em tudo, e isso sendo posto como algo inquestionável. Basta! Nós somos uma maré negra feminista que ao longo dos anos construímos um projeto para governar toda nação, povos negros e brancos, indígenas, os empobrecidos, os enriquecidos, com o posicionamento de pautar a justiça social, econômica e repartir o poder. Já deu 132 anos desde a abolição da escravidão. Não vamos esperar mais nada”, acrescenta a socióloga, que integra a Coletiva Mahin – Organização de Mulheres Negras.

Movimento Agora é Ela durante a festa de Yemanjá, no Rio Vermelho, em fevereiro de 2019 – Imagem: Ismael Silva

 

De corpo-objeto a corpo-quilombo

Historicamente, as mulheres negras foram submetidas a posições de subalternidade e de controle, tanto nas relações inter-raciais, quanto nos ambientes de maior incidência negra. A falta de protagonismo se reflete em diversos âmbitos da sociedade, entre eles o campo cultural literário, que ainda ancora as imagens das mulheres negras sob o viés da exploração, sendo raras vezes associada ao trabalho intelectual, como observa a doutora em crítica literária e cultural, Denise Carrascosa.

Denise Carrascosa (no centro) na já tradicional Marcha das Mulheres Negras do dia 25 de julho, em Salvador, durante o Julho das Pretas 2019 – Imagem: Lis Pedreira

“Diante de todo esse processo histórico de fetichização, de expropriação do corpo da mulher negra, ela foi tratada como alguém vazio, uma mulher oca, só um corpo a ser explorado e não uma subjetividade a ser narrada, constituída de memória, de dores, de possibilidades, de horizontes, de futuro”, destaca Carrascosa, que também é professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Denise destaca que essa fetichização e estereotipização são alguns dos desafios para o fortalecimento das narrativas de trajetórias de vida de mulheres negras, que está colocado, inclusive, para qualquer mulher negra que começa a escrever, sejam histórias sobre sua vida e experiências, sua comunidade ou sua família.

É o caso da farmacêutica, fitoaromaterapeuta e artesã, Mona Soares (@monasoars), que utiliza as redes sociais para divulgar seu trabalho e também para falar sobre o autocuidado dentro do universo de pessoas negras: “Percebo que não existe muita abertura para as pessoas negras mais plurais, existe um estereotipo do que é ser mulher negra. Eu já fui entrevistada muitas vezes por algumas mídias, que depois entrevistaram outra mulher negra que cabia mais no estereótipo daquilo que a mídia hegemônica espera e a minha entrevista cair e outra pessoa aparecer, porque é uma pessoa que traz uma história de sofrimento ou é uma pessoa que cabe dentro de certos estereótipos ligados a cultura ou a religiosidade”, aponta Mona Soares.

Para tentar se proteger dessa armadilha, a farmacêutica adotou como estratégia expor e denunciar a situação em suas redes sociais, assumindo uma postura de cobrança sobre o tratamento desrespeitoso frente ao uso de suas narrativas, além de ter parado de divulgar empresas que mandam produtos. “Eu só aceito receber produtos de empresas que aceitam ter um diálogo sobre possíveis ações remuneradas em relação aquilo. Isso não me dá nenhuma garantia, mas é uma cobrança que eu venho fazendo. Em alguns casos, deu um efeito maior”, diz.

Contra-ataque em rede

 Além da tentativa de transformar as narrativas de mulheres de negras em produtos econômicos para o mercado branco, outra armadilha colocada em pauta é o processo de individualização sustentado pela competividade. No jogo da visibilidade, sobretudo nas redes sociais, entra o modelo de sucesso individual, capitalista e ainda muito colonial. Para a mestranda em literatura e cultura, Samira Soares, que também produz conteúdo nas redes sociais, a prática libertadora das narrativas produzidas por mulheres negras só funciona a partir da coletividade e de uma relação afroancestral com as demais mulheres negras. “Eu, por exemplo, tenho meu instagram (@narrativasnegras) que surgiu muito nessa perspectiva de compreender que eu não sou individual. Eu vou falar da minha experiência, vou discutir o meu olhar sobre gênero, raça, sexualidade e também compartilhar as narrativas de outras mulheres negras”, ressalta.

Samira Soares durante Marcha do Empoderamento Crespo, em Salvador

Compreender a atuação emancipatória da produção intelectual das mulheres negras dentro de uma ótica ancestral em rede é ponto fundamental para efetividade das agendas inegociáveis que a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo a Violência e pelo Bem Viver elaborou e deixou como legado. “Quando as mulheres negras apresentam suas narrativas, elas enfrentam desafios muito grandes porque são narrativas muito complexas para mexer com a estrutura da sociedade e isso, necessariamente, os grupos, sejam eles de esquerda e de direita, não têm interesse, porque significa negociar poder, significa mudar a ordem”, enfatiza a jornalista Naiara Leite, coordenadora de comunicação do Instituto Odara.

Naiara Leite (a esquerda) durante a Marcha de Mulheres Negras, em Brasília, 2015.

Ao lado das armadilhas, estão também as defesas, as também chamadas tecnologias sociais com as quais as mulheres negras historicamente empreendem para resistir ao processo de dominação patriarcal racista e sexista. “O seu próprio corpo-quilombo como diria Beatriz Nascimento é um corpo que carrega memória, traumáticas, mas não só, carrega também potências de formulação de estratégias de sobrevivência não só para ela, mas para sua comunidade como um todo”, reforça Denise Carrascosa.

Exemplo disso foi a “negativa pública” que a própria Carracosa expôs em seu perfil no Facebook se recusando a aceitar os convites de editoras brancas que querem publicar suas traduções literárias e textos de crítica literária. Na postagem, ela diz: “Então poupem o tempo princesa Isabel de vocês (que desejam salvar as mulheres negras da pobreza e ignorância, nobremente abrindo mão de seus postos hereditários nas feiras literárias da vida e dando palestrinhas em seus enrugados palanques) e, por gentileza, poupem também o meu. Para minha comunidade (atingida por uma violenta tragédia secular e contemporânea), estou trabalhando. Para vocês, estou em pós-doutorado”, finaliza reforçando a prática de resistência.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *