Amar-Elo: pelo direito de existir, de viver e de sonhar

O documentário AmarElo: é tudo pra ontem (2020), idealizado pelo rapper e escritor paulista Emicida, que recentemente estreou na Netflix, poderia ser apenas um registro audiovisual do processo de composição das músicas e de produção do álbum sonoro AmarElo, lançado em 2019, assim como do show de lançamento desse trabalho no Teatro Municipal de São

Por Lecco França*

O documentário AmarElo: é tudo pra ontem (2020), idealizado pelo rapper e escritor paulista Emicida, que recentemente estreou na Netflix, poderia ser apenas um registro audiovisual do processo de composição das músicas e de produção do álbum sonoro AmarElo, lançado em 2019, assim como do show de lançamento desse trabalho no Teatro Municipal de São Paulo, que ocorreu no dia 27 de novembro de 2019, no entanto, ele é muito mais do que isso. O filme já se tornou um importante e necessário documento que resgata um pouco da memória cultural brasileira construída pelo suor, sangue e criatividade de diversas personalidades negras ao longo da história do país.

O que seria da cultura brasileira sem a intervenção concreta dos nossos e nossas artistas negros e negras? O que seria das grandes cidades brasileiras, como São Paulo, sem a atuação profunda e eficaz de inúmeras pessoas negras que ergueram e desenvolveram essas cidades? O documentário representa um olhar sobre o presente, com um direcionamento para o passado e uma projeção para o futuro. Uma constatação sobre futuros possíveis para jovens negros e negras, apesar de todo processo racista que ainda rege a sociedade brasileira, e que tenta diariamente exterminar esses sujeitos ou invisibilizar suas existências, apagar suas memórias, saberes e conhecimentos ou simplesmente se apropriar delas. O filme reivindica e simbolicamente devolve esse direito de existir, de viver e de sonhar, seja no imaginário, seja estimulando ações reais.

Produzido pelo Laboratório Fantasma, com roteiro de Toni C e direção de Fred Ouro Preto, o filme é dividido em três partes ou três atos, como recorrentemente se dá em um texto de dramaturgia; o ato I, intitulado “Plantar”, o ato II, “Regar” e ato III, “Colher”, todas essas palavras relacionadas à dedicação, nos últimos tempos, do Leandro Roque de Oliveira, nome de registro de Emicida, a sua horta, no sítio onde mora, e do aprendizado acumulado com a mãe nessa mesma atividade e na vida. O filme, de fato, também mostra o processo de composição de algumas canções do álbum mais recente do rapper, como “Ismália”, inspirada no poema homônimo do escritor brasileiro Alphonsus de Guimaraes; “Quem tem um amigo tem tudo”, dedicada ao amigo Wilson das Neves; “Principia”, “Pequenas alegrias da vida adulta”, “Eminência parda” e a própria “AmarElo”, cujo título é inspirado em um poema de Paulo Leminski (amar é um elo | entre o azul | e o amarelo); além das conversas com produtores, a exemplo de Marcus Valle, e com artistas convidados, como Fabiana Cozza, MC Tha, Zeca Pagodinho, Pablo Vittar, Mateus Aleluia, Majur, Larissa Luz e Fernanda Montenegro; e reúne cenas do show gravado no Teatro Municipal de São Paulo, um dos mais tradicionais e bonitos do país. O cantor, inclusive, revela algumas razões que o levaram a escolher esse local, em uma espécie de ocupação semelhante ao que o casal Beyonce e Jay Z fizeram no Museu do Louve, na França, para a gravação do clipe da canção “Apeshit”.

A obra intercala, de forma extremamente eficiente e delicada, todas essas cenas com imagens de arquivos das mais variadas fontes, revelando um pouco das inúmeras referências do artista, como leitor voraz de grandes obras e escritores da literatura brasileira e consumidor contumaz de discos musicais de vinil, assim como ilustra um cuidadoso processo de pesquisa histórica, de curadoria e de edição, que tornam o resultado final ainda mais encantador. São cenas de filmes clássicos, como Orfeu negro (1959), dirigido por Marcel Camus, depoimentos em vídeo de intelectuais negras, como Lélia Gonzales e Ângela Davis, da vereadora e ativista Mariele Franco, de grupos musicais de samba, como os Originais do Samba, de eventos artísticos, como a Semana de Arte Moderna de 1922 e manifestações políticas, como aquela que ocorreu nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo contra o racismo, em 1978, que resultou na criação do Movimento Negro Unificado (MNU), assim como imagens pessoais do próprio Emicida, destacando alguns momentos de sua trajetória artística, desde sua inserção na cena musical independente de São Paulo até o momento atual de reconhecimento e consagração, e aqueles mais íntimos com a família e amigos. A produção também homenageia e/ou resgata figuras negras importantes, apagadas, esquecidas ou não merecidamente reconhecidas, como os cantores e compositores Ismael Silva, Mestre Marçal e Heitor dos Prazeres, o ator, escritor e professor Abdias do Nascimento, o artesão e arquiteto Joaquim de Oliveira, mais conhecido como Tebas, a cantora e compositora Leci Brandão, a atriz Ruth de Souza, entre outras personalidades.

Com seu trabalho e militância, Emicida vem colaborando para a renovação cultural brasileira e para o combate às inúmeras formas de violências com as quais pessoas negras são acometidas, convertendo tragédias em potências, transformando dor em canção e lutos em lutas. É mais uma voz que se une a tantas outras do passado e do presente, ocupando espaços importantes na sociedade, levando alguns consigo e mostrando caminhos possíveis a outros.

 

*Lecco França é professor universitário, pesquisador, escritor, cineclubista, curador e crítico de cinema. Membro da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN). E-mail: leccofranca@gmail.com.

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress