Rossana e Rayssa fazem parte da quinta geração da família Holanda que ocupa o Porto do Capim, e há mais de dez anos travam luta contra gestões municipais que tentam expulsar os moradores da localidade
Por Elizabeth Souza
Imagem: Elizabeth Souza
Dentre os percursos para se chegar ao Porto do Capim, em João Pessoa (PB), um dos mais conhecidos é pela descida da ladeira do Hotel Globo, atravessando a linha férrea. Do outro lado é possível avistar algumas casas que formam a comunidade, composta por famílias que tiram seu sustento dos recursos que a própria localidade oferece: o mangue e o rio. Também são pessoas orgulhosas pela história e resistência que permeiam o local.
Ao adentrar na comunidade, à procura do Ateliê Ibeji, empreendimento comandado por Rayssa e Rossana Holanda, parei em uma quitanda para pedir informações, prontamente um senhor, conhecido por Irmão, apontou o caminho. “É das gêmeas, viu? Elas são as lideranças daqui.”
O gesto já revelava o que as irmãs representam para a comunidade onde nasceram, se criaram e vivem até hoje. Mulheres negras de 32 anos, gêmeas univitelinas e ribeirinhas, como se auto descrevem. “Nós duas temos uma ligação ancestral”, revela Rayssa.
Conexão que se mostra grandiosa na luta que as duas encabeçam pela permanência e existência do Porto do Capim. Localizada no Centro Histórico da capital paraibana, às margens do Rio Sanhauá, há quase 40 anos a comunidade sofre ameaças de remoção em prol de um projeto higienista de “requalificação”.
O Porto
Porto do Capim tem cerca de oito décadas de existência. A história da comunidade tem início após a desativação do Porto do Varadouro. Com o processo de desativação do Porto, a partir de 1935, e sua mudança para o município de Cabedelo, na Grande João Pessoa, deu-se espaço ao surgimento da comunidade.
“Os trabalhadores que foram abandonados, como pescadores, feirantes, cabeceiros, arrumadores de cargas, tiveram que arrumar outros meios de sobrevivência com a desativação do Porto”, explica Rossana. “À época, esses trabalhadores não moravam aqui, mas dentro de ilhas do Rio Sanhauá e faziam sempre esse trânsito de canoa, vindo para o Porto, e voltavam para suas casas”, complementa Rayssa.
De acordo com ela, quando o Porto foi desativado, os trabalhadores encontraram nisso uma oportunidade de melhorar de vida. Trajetória que, de acordo com laudo antropológico do Ministério Público Federal (MPF), foi iniciada com a presença marcante das mulheres, responsáveis pela condução das canoas que atravessaram o Rio Sanhauá para ocupar as terras que dariam origem à comunidade.
“A partir do diagrama familiar foi identificado que foram as mulheres que vieram remando fundando essa comunidade, com uma preocupação além do comercial. Enquanto os homens trouxeram o comércio, as mulheres trouxeram seus organismos familiares, como quem diz: ‘vou, mas eu não vou só’”, explica Rossana.
A força ancestral das mulheres ribeirinhas
Condução essa que tem atravessado gerações e desaguado como as correntezas de um rio na caminhada de Rossana e Rayssa. As irmãs desde muito cedo começaram a participar de atividades dentro da localidade. “Sempre fomos muito ativas no território, seja em aulas de dança, teatro, desde bem novas somos envolvidas na produção cultural do lugar”, conta Rayssa.
No entanto, o ingresso no processo de organização comunitária começa em 2011. Quem embarca inicialmente é Rossana Holanda, aos 20 anos, a partir de reuniões realizadas pela Fundação Companhia da Terra – que tinha um projeto de extensão universitária de educação patrimonial a partir do curso de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Os encontros tinham como público alvo os comerciantes da comunidade, para discutir como barracas seriam instaladas na festa junina.
“Eu trabalhava com minha mãe em uma lanchonete e Rayssa trabalhava de carteira assinada em outro lugar. Então eu comecei a acompanhar as reuniões sobre o evento cultural que aconteceria aqui no território”, relembra Rossana.
Os encontros passaram a ser periódicos e a tratar assuntos referentes ao projeto da Prefeitura de revitalização do Porto do Capim. O intuito era entender se os moradores da comunidade estavam sabendo do assunto e o que achavam. Foi quando a Fundação começou a identificar que os moradores não sabiam o que estava acontecendo, “porque o projeto não tinha consulta prévia”, lembra Rossana.
O projeto ao qual ela se refere, foi adotado em 1987 e se chama “Projeto de Revitalização do Centro Histórico” e integrou um convênio entre o governo brasileiro e a Agência Espanhola de Cooperação Internacional (AECI). Com o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no início do segundo governo Lula, em 2007, a prefeitura de João Pessoa adere ao projeto e intensifica o processo de destruição da comunidade.
Com as reuniões junto à Fundação Companhia da Terra, foi criada uma comissão que em 2014 deu origem à Associação de Mulheres do Porto do Capim, tendo Rossana, à época com 23 anos, como presidenta. “A Associação de Mulheres surge pela necessidade de haver uma maior formalização. Quando houve essa formalização veio a necessidade de um nome, quando observamos só tinham mulheres dentro da organização e eu estava à frente desde o início”, pontua Rossana.
Linha do tempo
Rayssa passa a se envolver de forma efetiva na luta pelo Porto em 2015, após um tempo fora da comunidade. Nesse mesmo ano, o Porto do Capim passa a ser reconhecido enquanto comunidade ribeirinha pelo MPF. Também nesse período nasce o grupo Garças do Sanhauá, formado apenas por jovens da localidade.
Um ano depois, em resposta ao projeto de remoção da Prefeitura em prol da intensificação do turismo local, Rayssa e Rossana lideraram a criação do “Vivenciando o Porto do Capim”, projeto inserido no conceito TBC – Turismo de Base Comunitária. “O Vivenciando é um guarda-chuva que acopla diversas atividades culturais dentro do território”, explica Rossana.
A vivência inclui visitação nas quatro áreas da comunidade: Vila Nassau, Praça 15 de novembro, Rua do Porto e Rua Frei Vital. Todas essas áreas têm guias locais, que são jovens que integram o grupo Garças do Sanhauá. O projeto também é dividido em pacotes que incluem apresentação cultural, culinária local e passeio de barco no rio que vai até a Ilha da Santa, onde acontece a procissão de Nossa Senhora da Conceição todo 8 de dezembro.
“Com isso a gente mostra que é possível fazer um turismo alternativo de vivência sem passar um concreto por cima do mangue, sem remover mais de 500 famílias, e sem destruir a cultura local”, frisa Rossana. Em meio aos processos de reinvenção e criação de estratégias, Rayssa e Rossana ainda viveriam muitos episódios truculentos na luta pela permanência. Em 2018, durante a gestão de Luciano Cartaxo, moradores do Porto viveram os momentos mais latentes do projeto de remoção da comunidade.
“A gente colocava nossas ideias e a Prefeitura o tempo inteiro derrubava o nosso braço pela força estatal e pelas suas articulações políticas, financeiras. Naquele período, tivemos reuniões com MPF, DPU [Defensoria Pública da União], Caixa Econômica Federal. Achávamos estar em uma mesa de diálogo e sendo ouvidas”, relembra Rayssa. Mas não foi o que aconteceu.
Em março de 2019, a Prefeitura apresentou ordem de despejo exigindo que os moradores saíssem de suas casas dentro de 48h. O objetivo da gestão era a construção do Parque Ecológico Sanhauá. “A gente se sentiu servindo de fantoche”, conta Rayssa.
Na época, os moradores foram às ruas para denunciar a situação e em abril houve uma audiência pública na Assembleia Legislativa da Paraíba. O que não foi o suficiente para evitar que em junho daquele mesmo ano a Prefeitura voltasse ao local para demolir casas de pessoas que aceitaram o acordo com a gestão em troca de auxílio aluguel e moradia em conjunto habitacional. Um dos principais argumentos da Prefeitura era de que a comunidade estaria localizada em área de preservação ambiental.
“O Porto do Capim tem quase um século de existência, é um território de estuário ribeirinho e que tem sua fonte de existência baseada em todo o ecossistema que existe aqui: manguezal, rio e povo”, assevera Rayssa, em posicionamento partilhado por Rossana. “A vegetação de manguezal que hoje existe por trás das casas havia sido devastada no processo de implementação do antigo Porto, décadas atrás. Esse mangue só veio ressurgir a partir da ocupação de moradias”, completa Rossana.
Mesmo com a chegada da pandemia da Covid-19, em 2020, as investidas da Prefeitura não cessaram e mais casas foram demolidas. “Eu diria que cerca de 25% dos moradores, a partir de muita violência psicológica deixaram a comunidade”, afirma Rossana, que destaca que o retorno dessas pessoas comprova que os conjuntos habitacionais não são bons para quem desenvolveu uma tradição ribeirinha.
2021 marca o encerramento do período Cartaxo à frente da gestão municipal, o que não significaria o fim dos conflitos. O novo prefeito, Cícero Lucena, estava também alinhado à ideia de remoção da comunidade. Um dos pontos altos nesse sentido ocorreu em agosto de 2023, quando a Prefeitura ingressou com uma reclamação no Supremo Tribunal Federal (STF) para a retirada dos moradores da comunidade ribeirinha, argumentando desta vez que a localidade se tratava de área de risco.
“A reclamação apresentada ao STF, dizia que a comunidade Porto do Capim não era tradicional, que precisava de remoção de todo território, e inclusive voltava à ideia do complexo turístico”, relata Rossana.
Ares de esperança
Novos ares de esperança surgiram ainda naquele mesmo agosto de 2023, quando o governo federal lançou o Novo PAC. Realizado também em parceria com a Secretaria Nacional das Periferias, o programa direciona recursos específicos para essas localidades. “Um PAC que prevê a reurbanização das periferias, que entende que elas têm que continuar existindo. A gente por aqui usa um trocadilho: não é revitalizar, porque aqui já existe vida, mas sim requalificar, trazer qualidade de vida”, frisa Rossana.
Novas reuniões foram realizadas com o IPHAN, MPF e a gestão municipal, que passou a apresentar um diálogo amistoso, o que, de acordo, com as lideranças do Porto do Capim tem sido feito a partir de pressões do governo federal. “O recurso desse novo PAC das periferias é muito maior do que o anterior e a gestão municipal tem interesse de garantir esse recurso, e a gente também tem interesse que seja garantido esse dinheiro, mas em benefício da comunidade”, pontua Rayssa.
No dia 7 de novembro, as irmãs Rossana e Rayssa participaram de reunião na Secretaria de Habitação do município de João Pessoa, onde técnicos da prefeitura colocaram em mapas já prontos desejos antigos do território. Tradicionalidade, manutenção das casas, requalificação do que é necessário e o remanejamento, se houver, dentro da própria comunidade, além da instalação de serviços públicos em áreas, como saúde, educação, cultura e turismo.
“A gente nesse momento se encontra esperançosa pela conjuntura nacional e pelos passos que a gente vem dando. O que foi construído agora não foi feito em apenas três reuniões, é uma construção que a gente vem trilhando há cerca de 13 anos”, diz Rossana.
Esperançar
Presente na comunidade há cinco gerações, a família Holanda fincou uma marca no tempo e na história do Porto do Capim com a chegada de Rayssa e Rossana. Preparando-se para o processo seletivo do mestrado em Antropologia na UFPB, Rayssa, formada em Psicologia, e Rossana, em Serviços Sociais, contam que pretendem trazer a história de resistência do Porto para a academia. “Queremos buscar essas identidades, que são plurais e envolvem muitos corpos e mentes indígenas e africanas”, diz Rossana.
O território ribeirinho, atravessado pelo mangue, pelo rio e por seu povo, permanece em pé, em meio ao avanço frenético da especulação imobiliária na cidade, por causa de lutas como a encabeçada pelas irmãs Holanda, mas também pela proteção espiritual que elas acreditam estar presente na comunidade. “Graças a todos os deuses e as ancestrais que regem esse território, como o Pai do Mangue, a Comadre Florzinha, que são entidades que protegem o Porto do Capim”, conta Rayssa.
Para as irmãs, Porto do Capim também é como um berço, um lugar de acalanto, que faz valer a luta. “Eu diria que o Porto do Capim é um colo de mãe que sempre está disposto a abraçar e deitar mais uma cabeça em seu colo independente do vínculo sanguíneo”, comenta Rossana. “Eu diria colo de vó, porque duplica esse acalanto”, completa Rayssa.
Lembrando as palavras da intelectual e ativista negra Angela Davis, Rayssa exalta a força das mulheres negras que movimentam muito mais do que as águas do Rio Sanhauá. “Somos nós quem estamos colocando João Pessoa, a Paraíba, e porque não o mundo, em movimento. Estamos mudando o mundo a partir do nosso mundo. Queremos cidades mais justas, sociedades pulsantes, seguras, queremos um Brasil plural, que possa se manifestar livremente e com respeito.”
*Este texto faz parte da série Akofena: Mulheres Negras e Indígenas em Defesa de Seus Territórios