Por Catiane Pereira
Tramita na Justiça uma ação civil pública contra a União com o pedido de reparação pelos danos causados durante a Guerra de Canudos, ocorrida em 1897. O processo, de autoria do prefeito do município, Jilson Cardoso (PSD), está na 1ª Vara Federal de Feira de Santana e solicita uma indenização de R$ 300 milhões, além da implementação de políticas públicas.
De acordo com informações divulgadas pelo Bahia Notícias, os fatos ocorridos na antiga comunidade de Belo Monte, onde viviam camponeses liderados por Antônio Conselheiro, constituem um genocídio promovido pelo Estado brasileiro. O chefe do poder executivo municipal sustenta que a ofensiva militar foi marcada por execuções em massa de civis, incluindo mulheres, crianças e idosos.
Um dos argumentos da ação é que o Brasil, por ser signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto de San José, tem a obrigação de reparar violações históricas. A ação também se fundamenta no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Além da indenização, o processo pede a criação de um programa de desenvolvimento regional voltado para a cidade. Entre as medidas sugeridas estão a construção de hospitais e universidades, ampliação do sistema de irrigação do rio Vaza Barris, cotas universitárias para descendentes das vítimas e pagamento de um salário mínimo mensal a estudantes canudenses no ensino superior.
“Há 128 anos, Canudos foi apagada do mapa. Essa ação é sobre resgatar nossa dignidade”, afirmou ao Bahia Notícias Jilson Cardoso, que propôs a ação após audiências públicas com moradores, camponeses e descendentes dos sobreviventes.
Conforme o documento, os autores além do prefeito, são: Edmilson Ferreira de Oliveira, Pedro Malaquias Filho, Jerônimo Calisto, Elizabeth Martins Coelho e Shirla Ferreira — esta última identificada, no site da prefeitura, como responsável pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza. A ação civil começou a tramitar em julho deste ano, e sua última movimentação ocorreu em 4 de agosto, quando foi solicitada a inclusão de documentos adicionais pelas partes.
O advogado responsável pelo processo, Paulo Menezes, defende a reconstrução simbólica de Canudos, com museus e memoriais, e solicitou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) participe pessoalmente da audiência de conciliação.
A ação ainda aguarda a definição da data para a audiência, onde a União poderá apresentar uma proposta de acordo. Caso não haja conciliação, a ação seguirá com a oitiva de testemunhas e especialistas.
Contexto histórico da Guerra de Canudos
A Guerra de Canudos, travada entre 1896 e 1897, foi um dos maiores massacres da história brasileira. O confronto aconteceu no sertão da Bahia, quando o Exército Brasileiro destruiu a comunidade de Belo Monte, formada por camponeses pobres, indígenas, ex-escravizados e sertanejos liderados por Antônio Conselheiro. Mais de 25 mil pessoas foram mortas, a maioria civis.
A comunidade de Canudos surgiu em um contexto de abandono e profunda desigualdade social no Brasil pós-abolição. Após o fim formal da escravidão, em 1888, a população negra recém-liberta foi deixada à própria sorte, sem acesso à terra, educação ou reparações mínimas. A República, proclamada no ano seguinte, manteve estruturas de poder racializadas e excludentes, beneficiando elites econômicas e latifundiárias.
Foi nesse cenário que milhares de pessoas negras e pobres, expostas à fome, à seca e à violência do latifúndio, encontraram em Conselheiro uma liderança espiritual e política. Em 1893, instalaram-se em um antigo latifúndio improdutivo às margens do rio Vaza-Barris e fundaram Canudos. No local, não havia propriedade privada e os alimentos eram distribuídos coletivamente, uma experiência de organização popular que confrontava diretamente a ordem social imposta pela elite branca.
O modelo autônomo e solidário de Canudos incomodava a Igreja Católica, os grandes proprietários de terra e o governo republicano. Acusados de não pagar impostos e de representarem uma ameaça à nova República, os “conselheiristas” foram duramente reprimidos. O vilarejo resistiu a três expedições militares até ser exterminado pela quarta, enviada pelo governo com milhares de soldados, canhões e autorização para destruir.
A destruição de Canudos representa não apenas um episódio de brutalidade estatal, mas também o apagamento violento de uma das primeiras tentativas coletivas de população negra e pobre de viver com dignidade e autonomia em território brasileiro.