Reparação no Brasil: o que as mulheres negras estão pensando?

No Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, a Afirmativa ouviu especialistas e ativistas sobre os avanços e desafios das políticas reparatórias no país

Por Andressa Franco

Imagem: Instituto Odara

Segundo dados do IBGE, no continente americano, o Brasil foi o país que importou mais escravos africanos. Entre os séculos XVI e XIX, foram trazidos à força cerca de quatro milhões de homens, mulheres e crianças, o que representa mais de um terço de todo tráfico negreiro.

Foram 388 anos de trabalhos forçados como base da economia colonial. Lógica que operou até 13 de maio de 1888, dia da assinatura da Lei Áurea, uma abolição apenas no papel. Como canta Lazzo Matumbi, no dia seguinte “não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir”.

Esta terça-feira (21) marca o Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em memória ao Massacre de Sharpeville, que ocorreu na África do Sul em 1960.

Mais de 40 anos depois, em 2001, foi realizada pela ONU em Durban, na mesma África do Sul, a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas. Reunindo 16 mil pessoas de 173 países, o encontro resultou em uma Declaração e um Plano de Ação, reconhecendo que a escravidão e o tráfico de africanos foram crimes contra a humanidade, requerendo reparação histórica.

Mas, não é reparação o que tem se observado nas últimas décadas, pelo contrário. Os índices da população negra brasileira nas diversas áreas sociais demonstram isso. Não é coincidência, é resultado do crime da escravidão contra a população afro-brasileira, que nunca foi reparado.

Março de Lutas

Em 2023 chega à 5ª edição o Março de Lutas, agenda organizada pela Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB). Esse ano norteada pelo tema “Reparação no Brasil: o que as mulheres negras estão pensando”.

Cleusa Aparecida da Silva é de Campinas (SP), integra a Casa Laudelina de Campos Mello, e é a atual coordenadora nacional da AMNB, além de especialista em políticas públicas. A ativista defende que as mulheres negras brasileiras podem ser consideradas as mães da temática de reparações do ponto de vista de diálogo internacional.

Além de levar um dossiê sobre a situação das mulheres negras do Brasil em todas as áreas, “tensionamos muito no interior da Conferência de Durban o debate sobre reparação histórica, foi uma proposta dos movimentos sociais negros das Américas”. Para ela, é o momento de aprofundar a compreensão política sobre o tema.

Cleusa Aparecida da Silva é a atual coordenadora nacional da AMNB, além de especialista em políticas públicas – Imagem: Arquivo Pessoal

Rosana Rufino, presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil (CVENB) da OAB São Paulo, acredita que esse aprofundamento passa pelo resgate histórico do período escravocrata.

Debate que considera complexo devido ao mito da democracia racial. “É fundamental trazer à luz a verdade de como a herança escravocrata influencia a realidade das pessoas negras no Brasil.”

O Brasil está atrasado

O debate das políticas reparatórias pela escravidão tem se aprofundado pelo mundo. Em 2014, a Comunidade do Caribe aprovou um plano para reivindicar da Europa reparações pela escravidão. Em 2019 foi formado o Comitê Suíço de Reparação da Escravatura. Nos Estados Unidos, desde a morte de Georg Floyd, o tema tem aparecido nas plataformas de vários candidatos políticos. Uma cidade em Illinois se tornou a primeira do país a pagar restituições em dinheiro a pessoas negras como reparação, e a Universidade Harvard anunciou a criação de um Fundo para investir em políticas de reparação ao racismo.

“No Brasil estamos bastante atrasados. Podemos dizer que a educação foi a área que mais avançamos. Mas é insuficiente. Não consigo localizar uma experiência com impacto significativo”, pontua Cleusa.  Embora destaque que houveram avanços, como a construção do conceito de saúde da população negra, e criação de leis como a 10.639. 

De acordo com Rosana, o Brasil passa por uma fase de entender as consequências do período de escravidão para nossa população na evolução educacional, profissional e social. O que passa por um resgate histórico e pela aferição de responsabilidades. A criação da política de cotas no ensino superior, o Estatuto da Igualdade Racial, entre outras iniciativas, destaca, são importantes. No entanto, ainda são insuficientes e não abrangem toda a população. 

Rosana Rufino, presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil (CVENB) da OAB São Paulo – Imagem: Arquivo Pessoal

Assim, observa na CVENB um primeiro passo para buscar um olhar técnico jurídico para medidas de justiça social, equidade racial e cidadania plena para população negra sob a ótica da justiça de transição. Considerando o direito à memória, verdade, justiça e reparação na educação, história, cultura, trabalho, e todos os aspectos sociais.

O país pode estar atrasado nas ações, mas a discussão é levantada há décadas. Em 1983, o ativista e senador Abdias Nascimento propôs o Projeto de Lei 1.332, que estabelecia medidas de ação compensatória. A proposta seria “destinada a indenizar, embora tardiamente, o trabalho não-remunerado do negro escravizado e o trabalho subremunerado do negro supostamente libertado a 13 de maio de 1888”. O PL foi arquivado.

O tema já chegou a ser ilustrado nos cinemas, em 2022. No enredo do filme premiado e censurado, Medida Provisória, onde o governo brasileiro decreta uma medida que obriga os cidadãos negros a voltarem à África como forma de reparar os tempos de escravidão.

É preciso reparação em todas as esferas

Cleusa faz um diagnóstico de que hoje é preciso de políticas reparatórias em todas as áreas da sociedade. “A gente não pode abrir mão de pedir justiça porque a impunidade é cúmplice da violência. Nós temos que pedir reparação.”

Ela afirma que a democracia também é parte fundamental de um projeto de reparação. Dentro da democracia participativa, Cleusa chama atenção ainda para a necessidade de dialogar com todas as esferas possíveis. Por isso, declara, a AMNB está pedindo agenda não só com o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos. Mas, com Economia, Infraestrutura, Cidades, e até mesmo com as estatais do governo.

“Todo mundo tem uma dívida centenária conosco”

Sob pressão dos movimentos negros, o poder público brasileiro desenvolveu no decorrer dos anos ações como o reconhecimento do direito à terra para quilombolas, Lei de Cotas, entre outras. Também sob pressão, o setor privado tem promovido ações como vagas para trainee ou para programas de qualificação exclusivamente para pessoas negras.

Para Rosana, ainda que sejam iniciativas importantes, ainda são insuficientes. “Não há perspectiva concreta de permanência nesses espaços. Quando se fala em diversidade, tem que pensar em inclusão.”

Cleusa concorda. Para ela, a atuação do setor privado é fundamental, mas esse mesmo setor, no Brasil, é o mais “conservador e atrasado do mundo”. “Acho fundamental que o setor empresarial se debruce sobre essa questão. Todo mundo tem uma dívida centenária conosco. É preciso ter iniciativas mais condensadas e mostrar exatamente onde está atuando”, argumenta.

Impacto de Durban

Especialistas avaliam que o documento final de Durban, assinado pelo Brasil, tornou-se um norteador para as políticas públicas contra o racismo. Sob influência da reunião, por exemplo, o IBGE passou a utilizar o critério de autodeclaração de cor/raça nos censos demográficos, permitindo diagnosticar a desigualdade racial nos diversos indicadores.

Para Rosana, o encontro teve um impacto fundamental. Mas, a luta por reparação começou muito antes. “O povo negro resistiu desde a retirada forçada do território africano, pulando do navio negreiro, nas rebeliões, nos quilombos, no movimento abolicionista, e hoje com os movimentos negros. Durban traz marcos legais”. 

A Conferência também foi marcada pelo protagonismo das mulheres negras, entre pesquisadoras e representantes da sociedade civil. Para Rosana, são as mulheres negras que constroem saberes não hegemônicos e estratégias que se interpõem às dinâmicas do poder repetidas através dos séculos. “Existe uma organização imensa de mulheres negras das diversas áreas de conhecimento com forte poder de articulação para garantir a efetividade das nossas conquistas. É uma luta ancestral e nós somos fruto dessa luta”, finaliza a jurista.

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