Por Karla Souza e Patrícia Rosa
Dona Mariju de Santos Soares, 40 anos, é moradora do bairro de Praia Grande, localizado no Subúrbio Ferroviário de Salvador (BA), onde viveu toda a sua vida. Foi ali que sua família cresceu e se estruturou. Desde setembro deste ano, no entanto, ela enfrenta o desespero de ser retirada do bairro por causa das obras do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), projeto do Governo do Estado da Bahia, cuja execução está sob responsabilidade da Companhia de Transportes da Bahia (CTB).
O VLT é apresentado como uma iniciativa de modernização do transporte da região. Contudo, o processo tem produzido efeitos contrários ao prometido. A retirada do trem do Subúrbio, em 2021, marcou o início de uma série de prejuízos para a população, incluindo a interrupção de um serviço acessível e essencial para os moradores. Quatro anos depois, os impactos persistem: as obras avançam lentamente e, agora, os moradores estão sendo retirados de suas casas mediante indenização.
Em 14 de novembro, o governo da Bahia publicou no Diário Oficial o decreto nº 24.102/2025, que autoriza a desapropriação de uma área de 23,9 mil m², na Vila Regina, no bairro Coutos, para dar continuidade ao Lote 1 do VLT soteropolitano. A medida, assinada pelo governador Jerônimo Rodrigues, pelo secretário da Casa Civil em exercício, Carlos Mello, e pela secretária da Sedur, Jusmari Oliveira, permite que a CTB realize atos de retirada das famílias.
O terreno será utilizado para a construção do trecho que ligará a Ilha de São João, em Simões Filho, ao bairro da Calçada. A iniciativa, que custou aos cofres públicos cerca de R$ 5 bilhões, entrou em uma nova etapa na última sexta-feira (5), quando os primeiros trens destinados aos testes foram apresentados, marcando o início da fase de implantação do sistema.
A face oculta do progresso
Enquanto o governo avança com a implantação do empreendimento, é fundamental observar o outro lado dessa modernização: o impacto direto sobre as comunidades que estão sendo removidas. O projeto, que promete transformar a mobilidade urbana, confronta-se com relatos de moradores sobre remoções e desapropriações que geram tensões e questionamentos sobre o diálogo e a justiça social.
É nesse contexto de incertezas e prejuízos que histórias como a de Mariju ganham ainda mais peso. A moradora enfrenta a possibilidade de desapropriação. Sua mãe, de 70 anos, chegou ao bairro aos cinco anos. A família passou por muitas dificuldades, sobreviveu da pesca por um período e, hoje, mantém um bar e restaurante na região. Agora, vê os bens construídos ao longo de décadas em risco. “Na verdade, nós estamos desgastados. A gente tá sendo obrigado a sair de nossa casa. Estamos sendo obrigados a morar em locais que a gente nem nada. Eles falam que vai ser melhor, mas pra quem?”, relata.

A moradora relata que, antes da retirada dos trens, o governo do estado havia entrado em contato com a comunidade, demarcando áreas e informado que algumas casas seriam removidas. Com o passar do tempo, porém, a informação mudou, e garantiram que nenhuma residência seria atingida. Mesmo assim, em setembro deste ano, os moradores foram surpreendidos com o anúncio de que as casas seriam demolidas. Em 2021, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado (Sedur) informou à imprensa que 449 casas seriam desapropriadas para a construção do sistema de transporte.
A família de Mariju vive um momento de grande tensão. A mãe, idosa, já sente a saúde abalada diante da possibilidade de deixar o lugar onde cresceu; suas memórias, laços e histórias com o território. Mariju relata ainda a dificuldade nas negociações com a CTB, que, segundo ela, impõe valores sem considerar as necessidades reais das famílias. Ao todo, a família possui três imóveis na região, e os valores oferecidos, segundo ela, estão muito abaixo do que os bens valem.
“Eles estavam dando valores baixíssimos. Por a gente não ter escritura, as pessoas que não têm documentação. Eles não estão nem aí, dizem que não tem como aumentar mais. A gente não tem interesse de vender, não tinha placa de venda.”
Segundo o relato, a falta de escritura tem servido como justificativa para impor valores sem possibilidade real de negociação.
A experiência de falta de diálogo e acolhimento vivenciada por Mariju, diante do patrimônio construído por sua família, contrasta com o que é divulgado pelo governo. No último dia 03 de dezembro, a Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE-BA), por meio do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento (CEA), realizou o 20º encontro da Rede de Diálogos com a PGE-BA, dedicado à apresentação e discussão da Instrução Normativa sobre Desapropriação, um conjunto de regras que orienta como o estado deve conduzir processos de desapropriação de imóveis. A distância entre o discurso oficial e a experiência cotidiana de moradores como Mariju evidencia a necessidade de maior transparência e diálogo público na condução das desapropriações.
Morador de Praia Grande e advogado, Renê César Freire da Silva acompanha desde a infância as transformações do bairro que cresceu. Ele vive na mesma área atingida pelo recente decreto de desapropriação e relata que o processo não começou agora. “Minha família é toda do bairro, meus amigos, e moro no local onde vai ter a desapropriação, que já está ocorrendo. Já está acontecendo indenização há 30 anos”, afirma.
Segundo Renê, a nova fase de remoções anunciada em setembro reacendeu um conflito que se arrasta desde 2019, quando equipes passaram pela comunidade fazendo cadastros e dando informações desencontradas sobre quem precisaria sair. Ele conta que o governo voltou ao local informando que, além das obras do VLT, há um projeto de transformar a região em uma orla, o que implicaria na retirada de casas ocupadas há quase um século, muitas delas construídas pelos antigos ferroviários.
Renê diz ser diretamente afetado pela atual desapropriação: perde três imóveis, entre eles o espaço da guarderia de vela, projeto social que forma jovens velejadores desde a década de 1980. Ele preside ainda a colônia de pescadores de Praia Grande, fundada há 60 anos e igualmente ameaçada. Relata que até agora não houve apresentação de proposta de relocação da colônia nem das iniciativas culturais e esportivas do bairro.

O morador afirma que o processo tem levado famílias a aceitar indenizações muito abaixo do valor de mercado, já que os imóveis na região ficaram mais caros após o anúncio das remoções. Ele descreve que moradores têm enfrentado crises emocionais e dificuldades de saúde sem que tenham sido oferecidos acompanhamentos adequados. Segundo ele, a CTB disponibilizou apenas um assistente social, sem apresentar o projeto completo da obra ou justificativas sobre os valores pagos.
Diante da pressão, Renê diz ter aceitado a indenização para preservar a própria saúde. Afirma que recebeu R$ 250 mil por três imóveis que avalia valerem cerca de R$ 600 mil. “Eu mesmo estou saindo da beira da praia para ir morar perto de uma favela. Acabei aceitando, porque eu baixei no hospital uma semana seguida de pressão alta, enxaqueca, muita dor de cabeça. Minha família fez: ‘Renê, deixa isso pra lá, é melhor do que você morrer’”, relata.
Ele aponta ainda dificuldade de acesso a documentos oficiais da desapropriação, dizendo que parte dos registros não foi disponibilizada para cópia. Afirma também ter buscado apoio de veículos de imprensa, sem retorno até o momento, o que, segundo ele, aumenta a sensação de que a comunidade está sendo silenciada em meio ao avanço das obras do VLT.
Desenraizamento
O cineasta e historiador Rafael da Silva Paranhos Costa, de 36 anos, nasceu e cresceu no Subúrbio Ferroviário e tem sua trajetória marcada pelos modos de vida associados ao mar. Sua memória afetiva começa nas práticas de pesca e mariscagem que atravessam gerações na região. Ele lembra que o primeiro contato com esses saberes ocorreu ainda na infância“A gente pescava, pegava marisco, siri, peixe, camarão, e fazia isso com 11, 12 anos. E fazia a moqueca, fazia escaldado e comia tomando refrigerante.”
Essas experiências fazem parte de práticas que, segundo ele, estruturam a vida no Subúrbio. Rafael é responsável pelo documentário “As Marisqueiras de Plataforma”, que retrata a realidade e memórias na vida das mulheres marisqueiras do bairro de Plataforma, no Subúrbio Ferroviário.

Ele recorda a fala de uma diretora escolar durante uma feira literária, ao exibir seu documentário. “Ela falou que quando era criança, quando faltava as coisas dentro de casa, […] a mãe reunia todos os filhos e levava para mariscar”. Para ele, esse depoimento reforça que pesca e mariscagem são mais do que trabalho: representam complemento alimentar, vínculo comunitário e subsistência. “Tem muita gente que tem outra profissão, é formal ou informal, mas também pesca. A pescaria ajuda a complementar a alimentação da família”, explica.
O interesse de Rafael pelo tema se tornou pesquisa quando a empresa responsável pelas obras do VLT marcou com números as estruturas da colônia de pescadores de Praia Grande, sinalização que, segundo moradores, antecede demolições. A situação despertou seu alerta ao perceber que a colônia, não formalizada e já vítima de tentativas de fraude em processos de registro, poderia desaparecer sem deixar rastro institucional.
Na época, Rafael cursava História e havia assistido ao filme “Narradores de Javé”, que narra a tentativa de um povoado de registrar sua própria memória para evitar a destruição pela construção de uma barragem. A semelhança o mobilizou a documentar a comunidade local.
Hoje, novamente diante da incerteza causada pelas obras do VLT, Rafael volta à colônia para sua pesquisa de doutorado. Ele observa que as famílias relatam depressão, ansiedade e medo diante da falta de informações claras sobre indenizações, valores e possíveis reassentamentos. Para ele, há uma condução silenciosa do processo que dificulta a mobilização e a visibilidade. “Parece que eles estão indo diretamente nas famílias afetadas e negociando a expropriação. Existe muita incerteza. Não sabem se o dinheiro vai dar para comprar outra casa no mesmo bairro ou se vão ser deslocados para muito longe”, relata.
Rafael alerta para o risco de desenraizamento de famílias que construíram modos de vida profundamente vinculados ao território. E afirma que a demolição da colônia não significaria apenas perda de espaço físico, mas ruptura de uma história coletiva.
A reportagem entrou em contato com a CTB e com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Sedur) para solicitar esclarecimentos e compreender melhor o processo de desapropriação, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.


