BOLETIM 1: Ecos dos Manuscritos de Búzios – 1798

A série Ecos dos Manuscritos de Búzios – 1798, reúne uma série de artigos (que poderiam ser boletins sediciosos noutros tempos) sobre as mídias negras brasileiras, publicados originalmente no Mapeamento da Mídia Negra no Brasil realizado pelo Fórum Permanente pela Igualdade Racial (Fopir)

Por Jonas Pinheiro

A história da diáspora negra no Brasil é marcada por uma série de resistências e enfrentamentos ao racismo e domínio europeu. Há uma história negligenciada que em dado nível invisibilizou as lutas dos povos negros do país, os reduzindo no “panteão” da historiografia à condição de escravos. Faz parte destes processos de luta o uso de meios de comunicação, existe um vasto histórico de produções negras que visavam subverter a lógica racista da sociedade brasileira em seus diversos contextos. A, assim chamada, imprensa negra participa de parte considerável da história das populações negras, mesmo quando ainda vigorava a escravização no país. Estes veículos estiveram presentes ao longo das disputas políticas do Brasil, não permanecendo alheias ao que acontecia nos contextos nacionais e até mesmo internacionais.

O primeiro pesquisador a tirar os jornais negros do anonimato e trazer para o conhecimento acadêmico, dando status de documento histórico, foi o sociólogo francês Roger Bastide em 1951. Merece destaque a pesquisa da brasileira Miriam Ferrara (1985), que em seus trabalhos fez importante levantamento da existência de jornais negros paulistas e gaúchos do século XX. Mesmo sendo de conhecimento dos pesquisadores possíveis publicações anteriores, o trabalho de Ana Flávia Magalhães Pinto (2006) é o primeiro a se debruçar sobre as produções da imprensa negra no século XIX. Até então, a maioria das pesquisas consideravam como marco da imprensa negra brasileira os jornais paulistas do início do século posterior. Cabe salientar que a imprensa negra é uma experiência diversificada, mesmo quando produzidas em contextos próximos e com relações entre si, os jornais não necessariamente estavam alinhados ou foram pensados como um movimento ordenado.

Estima-se que o primeiro jornal da imprensa negra no Brasil surge em 14 de setembro de 1833, na Tipografia Fluminense de Francisco de Paula Brito, com o pasquim Homem de Côr, que a partir de sua terceira edição passou a ser chamado O Mulato ou o Homem de Côr. O periódico durou cinco edições e circulou entre setembro e novembro do mesmo ano na capital do Império a época, o Rio de Janeiro. No entanto, uma experiência embrionária anterior acontecida na Bahia merece destaque. Antes do que é considerado o surgimento oficial da Imprensa no Brasil (1808), na Salvador de 1798, pessoas negras utilizaram como catalisador para a Revolta dos Búzios[1], boletins manuscritos colados em locais estratégicos da cidade. Nos boletins sediciosos[2], insurgentes em sua maioria negros reivindicavam a fundação da República Bahinense e convocava os baianos a lutar contra a escravidão, exigindo o fim da discriminação social e racial. A ousadia de Luís Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas, João de Deus e Manuel Faustino resultou em suas mortes brutais orquestradas pela Coroa Portuguesa.

Do mesmo período do Homem de Côr (1833) e também no Rio de Janeiro, Ana Flávia traz à luz os jornais: Brasileiro Pardo, O Cabrito, O Crioulinho e O Lafuente. Estes jornais constituem esse primeiro momento da imprensa negra brasileira e circularam entre setembro e novembro de 1833. Apesar de não necessariamente estarem coordenados entre si, as publicações tinham como mote principal a identificação com o ser afro-brasileiro e trazer em seus textos contestação acerca do “preconceito de cor”. Um dos aspectos principais das publicações, e que vai ser uma tônica em toda história da imprensa e mídias negras, são as demarcações de identidade negra em seus títulos. Estes primeiros pasquins da imprensa negra eram produzidos por negros libertos e letrados, que questionavam o tratamento recebido pelo Império, reivindicando o que assegurava a Constituição de 1824, que já mencionava a igualdade para todos os cidadãos[3].

Na segunda metade do século XIX e em outros locais do país, outras experiências da imprensa negra são apontadas por Ana Flávia. Na província de Pernambuco surge O Homem: Realidade Constitucional ou Dissolução Social (1876). Mais de uma década depois e em um Brasil com a escravização abolida, abre-se consequentemente um leque de possibilidades que permitem maior organização das populações negras, agora institucionalmente livres. O processo desencadeia desta forma o surgimento de mais duas publicações em São Paulo. Os jornais A Pátria (1889) e O Progresso (1899) possuíam ambos o mesmo subtítulo, “órgam dos homens de côr”. Há de se assinalar o fato destes órgãos de homens de cor produzirem seus próprio jornais, já que prenuncia uma fase posterior no século XX em que irão se multiplicar o número destas organizações e consequentemente de publicações da imprensa negra. No Rio Grande do Sul o jornal O Exemplo chegou às ruas de Porto Alegre em 11 de dezembro de 1892, e se classificava como literário, crítico e noticioso. A publicação é uma das experiências mais duradouras da imprensa negra e perdurou por 37 anos com interrupções ao longo da história, encerrando-se somente no ano de 1930 devido à quebra da Bolsa de Nova York.

O início do século XX inaugura um período de maior politização das populações negras, recém-libertas e num país com novo sistema político. As publicações da imprensa negra neste período concentram-se em São Paulo e tem ligação direta com as Associações dos Homens de Cor e movimentos organizados. No entanto, existem vestígios de periódicos em outros estados da recém-proclamada República. Como aponta Simões Pires (2006) esses clubes eram formados por grupos aos moldes das colônias estrangeiras e produziam seus próprios jornais, desta forma naquele contexto mais urbano os trabalhadores negros passam a se organizar de forma similar. Desta feita, é possível encontrar em São Paulo os jornais negros: O Combate, em 1912; O Menelick, em 1915; O Bandeirante, em 1918; O Alfinete, em 1918; A Liberdade, em 1919; e A Sentinela, em 1920. Em Campinas se destacam O Baluarte, em 1903, e O Getulino, em 1923.

Duas publicações deste período merecem destaque pela relevância e importância dentro das organizações negras. O Clarim, que posteriormente muda de nome para O Clarim d’Alvorada, foi publicado de 1924 a 1932, e é considerado um dos principais jornais da imprensa negra brasileira, chegando a manter relações diretas com publicações estadunidenses. Na década de 1930 o jornal A Voz da Raça (1933-1937), se constitui como porta-voz da Frente Negra Brasileira (FNB) até o penúltimo ano de existência da organização. Um dos maiores grupos de negros organizados do país possuía majoritariamente um viés integralista (movimento de extrema direita brasileiro) e em seu subtítulo o pasquim trazia a frase: ‘Deus, Pátria, Raça e Família’. Apesar de um ponto em comum, a luta antirracista, percebe-se ao longo da história e, sobretudo neste momento, as diferentes tendências políticas assumidas dentro da imprensa e das organizações negras.

A ditadura varguista, entre os anos 1937 e 1945, foi marcada por um período de repressão política, inviabilizando os movimentos de contestação de modo mais amplo. As publicações negras voltam a figurar após o fim do período de repressão. Em São Paulo surgiram o jornal Senzala (1946), Novo Horizonte (1946), Mundo Novo (1950), Notícia do Ébano (1957), O Mutirão (1958), O Níger (1960) e Correio D’Ébano (1963). No Rio de Janeiro foram lançados: O Quilombo (1948-1950), Redenção (1953), A Voz da Negritude (1954) e em Campinas surgiu o Hífen, em fevereiro de 1960. Como no século XIX, os nomes dos jornais reivindicam em seus títulos uma posição identitária de articulação política, se auto inscrevendo como espaço de afirmação cultural e simbólica. Um movimento que merece ênfase pela importância e foi responsável pela publicação do Jornal O Quilombo é o Teatro Experimental do Negro (TEN), liderado pelo escritor, poeta, dramaturgo, professor universitário e militante dos direitos dos negros, Abdias do Nascimento.

O golpe militar de 1964 novamente desarticulou o movimento negro, pondo suas lideranças praticamente na semi clandestinidade, como aconteceu com outras lutas políticas que estavam em curso no período. Depois de anos de repressão violenta o processo de abertura política do Brasil possibilitou (e foi possibilitado) pela reorganização dos grupos políticos em geral. É quando a imprensa negra volta a florescer: SINBA (1977), Africus (1982), Nizinga (1985) no Rio de Janeiro (este último é produto do  Coletivo de Mulheres Negras Nzinga fundado por Lélia Gonzalez e outras ativistas e é precursor ao discutir feminismo negro); Jornegro (1978), O Saci (1978), Abertura (1978), Vissungo (1979), em São Paulo; Pixaim (1979), em São José dos Campos/SP; Quilombo (1980), em Piracicaba/SP; Nêgo (1981), em Salvador/BA; Tição (1978), no Rio Grande do Sul, além da revista Ébano (1980), em São Paulo (DOMINGUES, 2008).

O maior destaque deste período é o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, do qual o jornal A Abertura chega a participar junto com uma série de outras organizações negras. O MNU depois de constituído passa a produzir boletins informativos para divulgar as ideias políticas do movimento. É de um destes boletins que surge o Jornal Nacional do MNU, inicialmente Nêgo – Boletim do MNU-Bahia, surgido em 1981. A partir de 1987 o boletim passa a se chamar Nêgo – Jornal do Movimento Negro Unificado. Em 1989 por decisão do congresso do MNU o periódico passa a se chamar Jornal do Movimento Negro Unificado, abandonando a denominação Nêgo.

Na década de 1990, motivado pelas discussões que se estabeleceram no pós-Marcha Zumbi dos Palmares[4] surge em 1995 o Jornal Ìrohìn (1996), editado por Edson Cardoso, o periódico circulou entre 1996 e agosto de 2009. Também de 1996, data a Revista Raça Brasil que foi lançada em setembro deste ano, fundada por Aroldo Macedo, e já no seu primeiro número, indicou a linha editorial direcionada à exaltação e afirmação da “beleza negra”. A Revista é um dos poucos veículos do segmento da imprensa negra que conseguiu ter certa longevidade[5], sendo publicado até os dias hoje, o que certamente tem relação com o fato da publicação dialogar com os formatos hegemônicos do mercado editorial.

O que fica perceptível neste breve histórico da imprensa negra brasileira é que este movimento da comunicação esteve presente em diferentes momentos do país atreladas aos variados contextos históricos, e reivindicando mais direitos para as populações negras. Apesar de ser um movimento diverso, e há riqueza neste fato, é possível perceber que, de maneiras variadas, o foco sempre foi a luta e o debate racial. Neste processo, o histórico da imprensa negra funciona como uma espécie de matriz comunicativa[6], que dá origem ao que já denomino neste artigo de mídias negras: meios de comunicação produzidos e gerenciados por pessoas negras com ênfase neste marcador sociocultural e que têm como intuito a luta contra o racismo em suas diversas instâncias sociais e políticas.

A vasta produção da imprensa negra se transforma ao longo do tempo, criando uma tradição de escrita e jornalismo negro. Com a criação de novos formatos e tecnologias este movimento diluiu-se, como sugere José Antônio dos Santos (2011) em sua Arqueologia dos Jornais Negros no Brasil, nos novos meios de comunicação de massa e em uma sociedade cada vez mais midiatizada[7]. São novos modos de socialidade em produções que têm como cerne principal a luta contra o racismo, que por sua vez assume novas configurações à medida que os contextos sociais e culturais se transformam. Sendo assim, é possível encontrar uma produção negra na comunicação com formatos e linguagens diferentes, desde o cinema negro de Zózimo Bulbul na década de 1970[8], às novas blogueiras (os), youtubers e influenciadores digitais. Veículos contemporâneos como a Revista Afirmativa, Alma Preta, Correio Nagô, Geledés dentre outros, se acrescentam à luta histórica dos movimentos negros e bebem na fonte dos seus antepassados, que utilizaram da comunicação para lutar pelo nosso povo ao longo da história.

 

Este artigo foi publicado originalmente no Mapeamento da Mídia Negra no Brasil realizado pelo Fórum Permanente de Igualdade Racial (FOPIR) – Acesse clicando na imagem

 

REFERÊNCIAS

CARIBÉ, Pedro Andrade. AUDIOVISUAL NEGRO BRASILEIRO: POR UMA RECONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE A PARTIR DOS DIREITOS AUTORAIS. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 9, n. 21, p. 52-63, fev. 2017. ISSN 2177-2770. Disponível em: <http://abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/226>. Acesso em: 06 ago. 2019.

DOMINGUES, P. Cidadania levada a sério: os republicanos de cor no Brasil. In: DOMINGUES, D.; GOMES, F. (Org.). Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil . São Paulo: Selo Negro Edições, 2014. recurso digital. p. 99-125.

__________________, Petrônio. Movimento negro brasileiro: história, tendências e dilemas contemporâneos. Dimensões – Revista de História da UFES, Vitória (ES), nº 21, p. 121-124, 2008. Disponível em: < http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2485>. Acesso em: 06 de ago. de 2019.

FERRARA, Miriam N.. A imprensa negra paulista (1915/1963). Revista Bras. De Hist., São Paulo, v.5, n.10, março/agosto 1985, p. 197-207. Disponível em: < https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3609>. Acesso em: 06 de ago. de 2019.

LENE, Hérica. Memória e história da imprensa na Bahia: os pasquins sediciosos da Revolta de 1798. In: XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo – SP – 05 a 09/09/2016. Anais…São Paulo: Intercom. Disponível em: < http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/lista_area_DT1-HJ.htm >. Acesso em: 17 de jul. 2019.   

MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação cultura e hegemonia. Rio de Janeiro. Editora UFRJ, 2008.

PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura à tinta preta – a imprensa negra no século XIX (1833-1899). 197 f. Brasília: UNB, 2006. Dissertação (Mestrado em História), Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, 2006.

PIRES, A. L. C. S. . As Associações de Homens de Cor e a Imprensa Negra Paulista. 1. ed. Belo Horizonte: Daliana – MEC/SESU/Secad- Neab-UFT, 2006. v. 1000. 150p.

SANTOS, José Antônio dos. Uma Arqueologia dos Jornais Negros no Brasil. História. Rio Grande, 2 (3): 143-160, 2011a, p. 143-160. Disponível em: < https://periodicos.furg.br/hist/article/view/2615 >. Acesso em: 06 de ago. 2019.

SODRÉ, Muniz. Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In: MORAES, D. (Org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad. 2006.  p. 19-31.

[1] Ao movimento é também dado os nomes de Revolta dos Alfaiates ou Revolta das Argolinhas. Os nomes derivam das maneiras que os insurgentes utilizavam para se identificar, e das características dos que participaram. Eles utilizavam búzios em pulseiras e argolas para se reconhecerem entre si, sendo a denominação Alfaiate devido à função que muitos dos participantes exerciam.

[2] Os boletins podem ser acessados no Projeto “Exposição Virtual do Arquivo Público da Bahia (APB)/Fundação Pedro Calmon (FPC)” disponível no site: <http://www.bvconsueloponde.ba.gov.br/arquivos/File/buzios/index.html#>. Acesso em: 12 de ago. de 2019.

[3] Vale lembrar que os escravos não eram considerados cidadãos neste momento.

[4] A Marcha Zumbi 300 anos, contra o Racismo, Pela Cidadania e a Vida é um dos marcos do Movimento Negro Brasileiro e reuniu 30 mil pessoas em Brasília, em 1996, no aniversário de 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares denunciando o racismo e a ausência de políticas públicas para as populações negras.

[5] Algo comum nas mídias negras são as dificuldades para manutenção dos projetos editoriais, o que por vezes culmina no fim destes veículos.

[6] O conceito é oriundo da proposta de Mapa das Mediações proposto Martin-Barbero (2008).

[7] Ver Muniz Sodré (2006)

[8] Os debates acerca do cinema negro apontam para uma relação com o movimento do Cinema Novo, que na década de 1970 produz alguns filmes que tocam na temática racial. Um destes filmes é Em Compasso da Espera (1973), filme dirigido por Antunes Filho, e estrelado por Zózimo Bubul. No mesmo ano, Zózimo lança o curta Alma no Olho (1973), que vence prêmios nacionais e internacionais, sendo “tratado por ativistas e pesquisadores como pedra fundamental do cinema negro brasileiro” (CARIBÉ, 2017, p. 60).  Outro destaque acerca do audiovisual citado por Pedro Caribé (2017) é a experiência na radiodifusão da TV da Gente, projeto liderado por Netinho de Paula, que, no entanto, não se consolidou e durou entre 2005 e 2007.

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