Cofundador aposta em atendimento a preço popular e acredita em avanços do mercado no Brasil
Por Andressa Franco
Dra. Sativa é o nome da clínica de atendimento terapêutico recém-lançada em Salvador (BA) em meados de abril deste ano, pelo biomédico Guilherme Cardoso e pela médica Beatriz Sampaio. Mas, o detalhe sobre a Dra. Sativa, é a base do seu atendimento terapêutico: canabinoides – substâncias que ativam os receptores de nome homônimo no corpo humano.
Biomédico de formação, Guilherme atua como pesquisador da área da cannabis medicinal desde 2015, quando começou a estudar as possibilidades desse tipo de terapia. No período atuava diretamente com médicos, pesquisadores e entusiastas, em uma iniciação científica na USP de Ribeirão Preto, São Paulo, cuja linha de pesquisa era voltada para possíveis tratamentos para o Mal de Alzheimer.
Foi durante a iniciação que Guilherme e Beatriz se conheceram, começaram a estudar o sistema endocanabinóide e, fascinados, se aprofundaram nessa abordagem. Assim, começaram a surgir às primeiras ideias sobre uma clínica voltada para o atendimento a partir da cannabis sativa e, principalmente, de maneira acessível.
“Essa foi uma das maiores motivações para gente iniciar o projeto, nós somos a primeira clínica popular, porque desde 2015 já tem a fundamentação para prescrição aqui no Brasil, e desde o acesso, realmente, é para pessoas de classe média alta, pessoas ricas, porque, não só o atendimento, mas também a base dos produtos tem um valor muito alto”, afirma. “Se a gente pensar que 70% dos brasileiros ganha até dois salários mínimos, fica inviável o acesso ao tratamento”.
A proposta da Dra. Sativa, de acordo com o biomédico, é oferecer atendimento, e também cursos, com valor popular. “Nós vimos essa necessidade de acesso aqui no Brasil, muitas pessoas, pelo que a gente conversa com os pacientes, tem a necessidade do uso da cannabis medicinal, e poucas têm acesso”, completa.
Para Guilherme, que já pesquisou o custo do tratamento em outras clínicas que atuam no mercado, o Brasil é um país que teria condições de oferecer esse atendimento a valores mais acessíveis. As consultas e tratamentos, de acordo com essas pesquisas, tem um valor que varia de R$ 500 a R$ 1.000, a pretensão da Dra. Sativa é se manter é uma base de até R$ 300. A planta é utilizada para tratamento de condições neurológicas, como a epilepsia e o Mal de Parkinson, além de também ser eficaz contra doenças e dores crônicas.
“É sim um produto de qualidade, tem sim as suas dificuldades para fazer um óleo de qualidade, de trazer para indústria, é uma planta que, assim como qualquer medicamento, tem os seus custos. Porém a gente vê que daria para facilitar os valores, o Brasil teria conhecimento, teria todas as condições de ter o próprio produto de qualidade com um valor acessível, só que ninguém se motiva”, ressalta.
Os atendimentos presenciais na capital baiana já começaram, e o que os fundadores buscam também é formar novos profissionais para atuar nesse mercado. A clínica conta hoje com seis médicos que, além de atender na matriz soteropolitana, também realizarão atendimento nas outras regiões do país de forma online, por meio da telemedicina e sistemas de prontuários digitais.
A clínica oferece três tipos de consulta, uma inicial para entendimento do caso, a segunda opção é voltada para as pessoas que não têm um diagnóstico, ou não tem certeza do seu quadro, e o terceiro formato é um acompanhamento ao paciente, realizado mensalmente.
“O medicamento à base de cannabis é uma abordagem nova, então a gente, como já atende na área, sabe que é bem difícil o paciente ter o conhecimento do manejo, da dosagem, é uma dosagem única para cada paciente, então requer certo cuidado, supervisão”, justifica.
O contexto de inauguração da clínica em Salvador dialoga diretamente com recentes mudanças a respeito da regulação do uso de produtos à base de cannabis pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Também em meados de abril, a entidade sanitária aprovou dois novos produtos de soluções de uso oral à base de Canabidiol (CBD). Além do Canabidiol, a outra substância permitida pela Anvisa para uso em medicamentos, é o THC (Tetraidrocanabinol), ambas extraídas da cannabis sativa.
A partir das novas autorizações, fica permitida a importação dos produtos, fabricados nos Estados Unidos, para comercialização em solo nacional. Conforme disposto em norma, o canabidiol poderá ser prescrito quando estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro.
“O médico hoje consegue prescrever legalmente, e aí existem várias discussões jurídicas ainda hoje em dia. A gente tem conhecimento de alguns projetos no Brasil de mães que estão fazendo o plantio em casa [para tratamento de filhos com epilepsia, por exemplo], tem uma série de regulamentações ainda em falta”, opina Guilherme sobre as regulamentações da Anvisa.
Racismo e Lei de Drogas
Quando o assunto é cannabis, um dos primeiros pensamentos, aqui no Brasil, é seu consumo recreativo, e, consequentemente, o debate que gira em torno da Lei de Drogas, que vigora desde 2006. Uma das questões mais problemáticas a esse respeito é justamente a seletividade sócio racial do sistema de justiça na determinação de quem é usuário e de quem é traficante.
O 27º relatório global da organização Human Rights Watch, publicado em 2017, afirma que a Lei de Drogas de 2006 é “um fator chave para o drástico aumento da população carcerária no Brasil”. Entre os presos no país, o crime de maior incidência é tráfico de drogas, correspondendo a 28% dos detentos. Em 2005, antes da reforma da lei de drogas, 9% dos presos no Brasil haviam sido detidos por crimes relacionados às drogas. A maior parte dessa população prisional é composta por jovens e negros: 55% possuem entre 18 a 29 anos; e 64% são negros.
Ser uma pessoa negra à frente de uma clínica voltada para o uso terapêutico da substância, portanto, é algo que chama atenção.
“Eu sempre digo, é impossível falar sobre cannabis no Brasil e não apontar questões raciais, racismo estrutural, criminalização”, declara Cardoso “A gente está falando de uma planta que foi trazida para o Brasil pelos escravos, e de uso milenar, que só foi criminalizada nos últimos 100 anos. Então tem sim certos preconceitos”.
O biomédico relata que muitos pacientes chegam à clínica querendo conhecer melhor o tratamento, mas também com medo, especialmente pessoas negras. Para ele, esse receio vem de todos os anos de demonização e criminalização, “como a gente passou por um processo de criminalização, há sim um medo de entrar na área e achar que está fazendo alguma coisa ilegal”.
Guilherme fica otimista quando compara o Brasil de décadas atrás com os recentes avanços que vêm acompanhando, inspirado principalmente pelo progresso que observa ao redor do mundo. “A minha bisavó plantava cannabis no quintal para aliviar dores porque não tinha acesso à saúde, então isso faz parte da nossa identidade, da nossa cultura e ancestralidade”.
Para ele, um caminho para o país conseguir continuar avançando nesse debate e desenvolver o mercado, inclusive gerando empregos, é um diálogo maior entre profissionais de saúde, para quebrar o tabu diante das novas possibilidades da medicina. “Principalmente profissionais pretos, que poderiam estar à frente desse assunto, estudando, conhecendo, fazendo parte do mercado de trabalho, querendo ou não, nós temos sim uma identidade cultural nesse assunto”.