Por Alane Reis
Era um fim de tarde de sábado do mês de setembro de 2014. Júnior* (nome fictício para preservar a fonte) e um amigo, ambos negros de 16 e 19 anos, se divertiam como de costume em um bar do bairro São Cristóvão, periferia de Salvador. “Estávamos do lado de fora, o paredão rolando, foi passando devagar a viatura, a rua tava tão cheia que nem imaginei que iam mirar logo em mim”. A viatura da Polícia Militar (PM) avistou os jovens e parou para abordá-los. “Foi aí que eu percebi que era o mesmo policial que já tinha me baculejado duas vezes”. Júnior tinha no bolso aproximadamente 25g de maconha, seu colega possuía 5g de cocaína. Segundo o jovem, na época adolescente, as substâncias eram para uso pessoal dele e do amigo. Ambos foram levados para a 49ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM), no mesmo bairro.
“O tenente batia nas mãos (algemadas) da gente com um pau, daqueles barrotes que seguram laje, e os outros policiais davam murro na barriga, costela, nas costas. Depois fizeram uma fila, mandaram a gente passar e todos iam batendo. O colega depois desceu pra 1ª (CIPM) e eu fui pra DAI (Delegacia para o Adolescente Infrator). Fiquei lá três dias só de cueca, morrendo de frio, sem lençol. No quarto dia fui pro CAM (Casa de Acolhimento ao Menor)”. Após três semanas de reclusão, Júnior foi chamado para uma audiência. Ele conta que a promotora insistia reiteradamente que ele era traficante e deveria continuar preso. A defensoria pública não convidou testemunhas para deporem a seu favor. “Só foi minha mãe mesmo. Nem sabia que podia chamar mais gente”. Na ocasião, ele foi informado que teria outra audiência e, enquanto isso, aguardaria no CAM. A outra audiência nunca aconteceu e ele foi solto depois de dois meses. Seu amigo foi julgado e cumpre pena de cinco anos de prisão por tráfico de drogas.
Assim como Júnior e o amigo, o bacharel em Gastronomia Maurício*, também é usuário de droga. Era sexta-feira, 21 de agosto de 2010, Maurício tinha 28 anos. “Fomos procurar um brother que tinha o canal de 1kg (de maconha). Essas histórias que a gente nunca sabe realmente quem é a pessoa que vai vender” – a identidade preservada e a venda em grandes quantidades em apartamentos de bairros considerados seguros, são características do tráfico e consumo de drogas entre jovens brancos da classe média. Maurício e o amigo pegaram a encomenda na Barra e retornaram em direção a Pituba, bairros ds classe média soteropolitana. No caminho, por volta das 20h, foram parados em uma blitz e presos em flagrante. Os dois ficaram 60 dias detidos na Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes (DTE) de Salvador.
Maurício conta que passar o aniversário preso foi o maior trauma que a experiência na prisão lhe causou, e que durante todo período não sofreu nenhum tipo de agressão (física ou verbal). “Talvez porque eu pareça, sou tachado de playboy, classe média alta. Provavelmente foi por isso mesmo”. A juíza responsável pelo processo falou para os advogados dos jovens que eles ficariam dois meses presos “de castigo”. Após esse tempo o alvará de soltura foi concedido e eles responderam em liberdade. “Até o promotor (acusador) parecia estar do nosso lado: pela nossa personalidade, o jeito da gente falar, pelos familiares e amigos que foram testemunhar, ele entendeu que não éramos traficantes”. Ambos foram absolvidos da acusação de tráfico de drogas e hoje seguem a vida com a ficha criminal limpa.
O polêmico artigo 28 da Lei de Drogas
Maurício, Junior e seus respectivos amigos foram julgados a partir da Lei de Drogas em vigor no Brasil desde 2006. Neste ano, a legislação foi reformulada e desde então, em tese, os usuários de drogas já não podem ser penalizados com prisão, e o uso de drogas deixa de ser crime para ser contravenção. Cabe assim ao usuário: penas de prestação de serviços à comunidade e participação em medidas educativas sobre os efeitos das drogas – foi o que aconteceu com Maurício e o amigo – ainda assim, na opinião de muitos juristas, é inconstitucional aplicar qualquer tipo de pena ao usuário de drogas.
De acordo com a advogada, mestre e Doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), Allyne Andrade, “o porte de drogas para consumo pessoal em circunstâncias que não envolvam perigo concreto, direto e imediato para terceiros, não pode ser considerado crime”. Ela defende que este é um dos motivos da inconstitucionalidade do artigo 28 da lei brasileira de drogas (11.343).
Um problema ainda maior e que expressa de maneira ainda mais dramática a seletividade sócio racial do sistema de justiça é a forma em que se determina quem é usuário e quem é traficante. O artigo diz o seguinte: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. O critério é subjetivo e faz com que o policial que executa a prisão, e posteriormente o juiz, selecione se a pessoa presa com droga é usuária ou traficante. “Quanto mais branco for esse réu, mais próximo do que um juiz identifica no seu quadro comum de referências como cidadão de bem, jovem de boa família – ele será enquadrado como usuário. Quanto menos ele ou ela pareçam com essa imagem, mais chance terá de ser enquadrado como traficante”, assinala a advogada Allyne Andrade.
O juíz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Valois, chama atenção que a política brasileira de drogas sempre foi uma forma de tornar o poder policial mais repressivo, amplo e abstrato, “permitindo que a polícia invada casas, reviste pessoas, pare carros, sem controle. O policial da esquina é o verdadeiro juiz, o que diz quem é usuário ou traficante, quem vai ou não ser preso”.
O juiz Valois, que também é Doutor em Criminologia e Direito Penal pela USP, afirma em sua tese que mais de 70% das prisões em flagrante por tráfico de drogas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília, têm como testemunha apenas os policiais que participaram da operação. 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação.
“Os dados mostram claramente que brancos em regiões mais nobres das cidades são considerados usuários, mesmo com quantidades maiores de droga do que negros, que tendem a ser considerados traficantes. O critério se estabeleceu na prática, e é simples: branco é usuário, negro é traficante”, é o que afirma o doutor em Ciências Políticas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Pedro Abramovay, no artigo “Branco é usuário, negro é traficante”.
Tramita no Supremo Tribunal Federal um processo de descriminalização integral do consumo e porte de drogas para fins pessoais. Os principais argumentos do processo se aportam na não existência de crime no consumo próprio, e que a subjetividade do artigo fere o direito de igualdade entre as pessoas. O processo poderia significar um avanço histórico dos direitos humanos na Lei de Drogas, caso a conjuntura política não garantisse o engavetamento da proposta. Até o momento foram proferidos três votos no processo — suspenso por pedido de vista do ministro Teori Zavascki (morto em janeiro de 2017). Todos os votos foram pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Entre as questões julgadas está a determinação em lei da quantidade de drogas que diferencia uso de tráfico, para conter a seletividade sócio-racial nos processos.
A lei de drogas e o sistema carcerário
O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo com mais se 726.712 mil presos distribuídos em 368.049 vagas. 89% desta população estão em unidades superlotadas, é o que afirma o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), publicado em dezembro de 2017. Outro estudo, o 27º relatório global da organização Human Rights Watch, também publicado no ano passado, afirma que a Lei de Drogas de 2006 é “um fator chave para o drástico aumento da população carcerária no Brasil”.
Entre os presos, o crime de maior incidência é tráfico de drogas, correspondendo a 28% dos detentos. Em 2005, antes da reforma da lei de drogas, 9% dos presos no Brasil haviam sido detidos por crimes relacionados às drogas. E lamentavelmente sem surpresas, o racismo garante que a maioria dos presos brasileiros sejam jovens e negros: 55% possuem entre 18 a 29 anos; e 64% são negros. Alguns estados alcançam quase 100% de população prisional negra, como o Acre (95%), Amapá (91%) e Bahia (89%).
O crescimento da criminalização tem sido ainda maior entre as mulheres. A população de mulheres presas no Brasil cresceu 698%, entre 2011 e 2017. Entre elas, 68% estão presas pelo crime de tráfico de drogas. Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) revelam também que 68% da população das penitenciárias femininas são negras. A mestre em História e militante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), Anne Rodrigues, chama atenção para os impactos sociais do encarceramento em massa de mulheres negras. “Quando uma mulher negra sai de casa, aquele ambiente social se desestrutura por completo. Uma rede de pessoas fica desvalida de proteção e direção. Assim, a comutação de pena para as mulheres mães é urgente, porque os efeitos da sua retirada do convívio familiar é bem mais danoso às gerações futuras”.
Todas as pesquisas revelam que as cadeias brasileiras tem se tornado depósitos de pessoas negras e pobres, sujeitas a todo tipo de violação humana. Andrade não acredita na hipótese que há uma crise no sistema penitenciário brasileiro. “O que há são práticas contínuas, calculadas e deliberadas de violência, ação e omissão estatal. Não precisava ser nenhum especialista para olhar o crescimento do número de encarcerados, o absurdo número de presos provisórios (ainda sem julgamento) e perceber as consequências óbvias. O Estado está dando o recado que para eles essas vidas não importam”.
Histórico da crimininalização: O Tio Sam nas políticas brasileiras de drogas
Salvo experiências isoladas, o uso de todas as drogas era legalizado em todo o mundo até o início do século XX. O panorama começou a mudar na virada dos anos 1800 para os 1900, impulsionado pelos EUA, que deu início a onda de proibição. As bases da vedação do uso jamais foram científicas ou médicas, mas sim sociais, econômicas, morais, religiosas, racistas e xenofóbicas.
O século XIX marca o início do controle de substâncias com vistas ao controle de populações e condutas. “A primeira experiência brasileira é registrada em 1830, no Rio de Janeiro – a proibição do pito do pango – o hábito de fumar maconha, diretamente relacionado com a criminalização da população negra, as vésperas do fim do tráfico de escravos”, afirma o historiador, e fundador da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas (INNPD), Eduardo Ribeiro.
Ainda nas primeiras décadas do século XX a maconha era pouco controlada, e liberada na maioria dos países, embora muita gente a visse com maus olhos. Em todo Ocidente, fumar maconha era relegado a povos marginalizados e visto com antipatia pelas elites brancas. No Brasil era “coisa de negro”, e como explica Eduardo Ribeiro, “aqui, a proibição da maconha vem no bojo de outros instrumentos de coerção sócio racial, como a proibição da Capoeira, do culto às religiões de matriz africana e a perseguição ao crime de vadiagem”.
Eduardo Ribeiro chama atenção que o controle das indústrias farmacêuticas e médicas também influenciaram fortemente nas leis de proibição das drogas em todo mundo. “Estes setores reivindicavam o privilégio do acesso e controle das substâncias, o que interferiu diretamente na criminalização de saberes populares e culturas tradicionais. Então, a partir do final do século XIX, o Brasil passa a perseguir curandeiros, mães de santo e diversas outras experiências de cura, sobretudo as que estão relacionadas com as populações indígenas e negras”. O historiador destaca que a pressão cristã, principalmente protestante, também criminalizou o uso de drogas e todo prazer humano.
Em 1969 o republicano Richard Nixon assume a presidência dos EUA, declara e cria o termo “guerra às drogas”, que seria a suposta erradicação do uso e do tráfico por meio de prisões em massa. Para isso, ele criou a Drug Enforcement Administration (DEA), órgão do governo federal que passou combater os entorpecentes dentro e fora do país.
Em 1988 a promulgação da constituição brasileira determinou que o tráfico de drogas é crime inafiançável e sem anistia. “Nesse contexto, o Brasil importa dos EUA a política de drogas onde o foco na saúde é substituído pelo foco em Segurança Pública”, explica a militante da Renfa, Anne Rodrigues.
Rodrigues fala que o movimento negro por décadas esteve afastado da pauta antiproibicionista por dois motivos: as inúmeras prioridades da luta antirracista e, principalmente, pela abordagem inicial do movimento antiproibicionista, organizado majoritariamente por militantes brancos, classe média, que reivindicavam o direito a liberdade individual e não denunciavam os impactos sociais e racistas da política proibicionista.
Para a feminista negra, militante da Renfa, os anos 2000 foram fundamentais para política de drogas “porque é quando o debate cria caldo nos direitos humanos”. A partir de então já não é politicamente possível, e passa a ser cada vez mais reduzidas, narrativas de que a militância antiproibicionista não diz respeito à população negra.
Para Eduardo Ribeiro, o movimento antiproibicionista mudou, mas ainda há um extremo controle de recurso e visibilidade por parte das organizações brancas. “Temos um movimento que está fortalecido do ponto de vista histórico, dos últimos 20 anos, inclusive, graças às organizações feministas e organizações negras, no entanto, ainda há uma hegemonia e um boicote da nossa participação por organizações brancas”.
Uso e abuso de drogas para a população negra
O médico e Doutor em Sociologia, Antonio Nery Filho, é hoje uma das principais referências brasileiras sobre os impactos do uso e abuso de drogas. Ele criou e dirige o Centro de Tratamento do Abuso de Drogas (CETAD), da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O médico explica que de maneira geral há três tipos de usuários de droga: os “experimentadores”, que fazem usos esporádicos, pouco ou não programados, em decorrência de uma circunstância social. “Este uso também é chamado de recreativo”; os usuários eventuais são aqueles de consumo irregular, mas permanente, controlado, podendo ou não acarretar prejuízos sociais, tais como acidente de veículos sob efeito de álcool, prejuízo escolar ou no trabalho. Doutor Nery afirma que a maioria das pessoas se enquadra nesta categoria de usuário de substâncias psicoativas (SPA).
E há os usuários dependentes: “minoria absoluta dentre os consumidores, representado por pessoas que fracassaram em suas trajetórias de vida e ‘encontraram’ nas substâncias psicoativas alguma alternativa, em geral para o sofrimento. As duas primeiras formas de uso apresentam baixo risco a saúde, levando em consideração os danos que todas as SPA fazem, em maior ou menor grau. Para estes, cabem respectivamente, informação e orientação, o uso faz parte da vida social, não se trata necessariamente de um estágio anterior a dependência. Para a terceira categoria cabem cuidados sociais e de saúde”.
O historiador e militante Eduardo Ribeiro afirma que “não há no Brasil estatísticas seguras que demonstrem uma prevalência maior de dependência química e uso abusivo de substancias químicas por parte da população negra”. Mas o fato é que seja pela trajetória e argumentos elitistas do movimento pró legalização das drogas, ou pelas mazelas que o racismo, associado ao uso abusivo de drogas no Brasil, principalmente o álcool e outras SPAs, de grande potencial danoso ao organismo, a exemplo do crack, há uma resistência muito grande por parte das pessoas negras em geral e dos movimentos negros em particular, em entender que a proibição das drogas como atualização das políticas genocidas anti negras e indígenas, elaborada a partir da união entre a indústria e o Estado, com bases religiosas e morais, que visa o lucro sob qualquer circunstância.