De frente com a “cura”: Assédio e constrangimento contra mulheres lésbicas e bissexuais em consultas médicas

Para mulheres cisgêneras lésbicas e bissexuais, o ambiente médico pode trazer inúmeras violências. Quase sempre, o tratamento marcado por constrangimento e falta de informação começa quando a orientação sexual é revelada.

Por Maria Sol

Arte: Ani Ganzala

Para mulheres cisgêneras lésbicas e bissexuais, o ambiente médico pode trazer inúmeras violências. Quase sempre, o tratamento marcado por constrangimento e falta de informação começa quando a orientação sexual é revelada. As violências simbólicas, físicas e, inclusive, sexuais, fazem com que essa população até mesmo evite a ida a esses espaços, gerando impactos na saúde e reforçando invisibilidades.

O mais comum é ocorrer nas consultas ginecológicas. Em 2002, dados da Coordenação Nacional de DST-AIDS, indicaram que 40% das mulheres que transam com mulheres não revelavam a orientação sexual durante a consulta com ginecologistas. E entre as 60% que revelavam, 30% delas enfrentavam situações de assédios e constrangimentos. 

De acordo com Naiara Bispo, assistente social e integrante do Coletivo TamoJuntas, em Salvador (BA), o assédio se dá por atitudes abusivas através de gestos, comportamentos, palavras (ditas ou escritas) ou atos que possam constranger a integridade física, moral ou psíquica. “Para ser assédio não há necessidade da existência do toque. Se importuna e constrange é considerado assédio”, explica Naiara.

A necessidade pelo atendimento já as coloca, enquanto paciente, em uma posição de submissão em relação ao profissional de saúde, que por sua vez, quando pertence à classe médica ocupa teoricamente status social de saber e poder na sociedade. Quando além de serem lésbicas e bissexuais, são também mulheres negras e periféricas, esses atravessamentos se potencializam.

Assédios e constrangimentos
Ilustração: Shutterrstock

O assédio, em muitos casos, pode ser sutil e confundir. Mas os impactos emocionais são evidentes.“Sento sempre com ansiedade antes das consultas e por vezes postergo, saboto ou me nego a fazer esse encontro por causar em mim desconforto”, disse a professora Tayná Egas, de 31 anos, moradora de Teresina (PI). Por muito tempo Tayná foi atendida por um médico da sua família que sabia da sua sexualidade e fazia perguntas estranhas sobre sua vida sexual.

Relatos de experiências como esta não faltam. É o caso da gerente Duda Aragão*, 33 anos, mulher lésbica que não performa feminilidade e mora em Salvador (Ba). Ao buscar pela iridologia como prática alternativa de saúde, ela vivenciou uma situação desconfortável, em que se sentiu assediada sexualmente. Ela relata que depois de examinar a íris dos olhos, como parte do processo terapêutico, o profissional apagou a luz e pediu para que ficasse à vontade e tirasse o máximo de roupa que pudesse.

“Fiquei de calcinha e sutiã. Ele perguntou se eu já tinha feito exame de mama. Eu falei que não. Ele pegou no meu seio.  Só que quando ele pegou no meio. Ele segurou meu peito e deu uma sacudida. Aí pegou o outro e fez a mesma coisa. E aí eu comecei a me sentir incomodada porque achava que não fazia parte do procedimento de quem vai ler a íris. Era o olho e não tinha porque pegar no peito. Aí o próximo passo foi apalpar a parte no pé da barriga. Ele abaixou um pouco a calcinha e começou a apalpar”, relata. 

Caso semelhante aconteceu com servidora pública sergipana Renata*, de 38 anos, quando precisou ir ao ginecologista para fazer exames de rotina.“Quando ele me questionou com relação a métodos contraceptivos, eu disse que não usava porque me relacionava com mulheres. Então, ele me questionou se eu já havia me relacionado com homens. Ao responder que sim, ele perguntou se estava me relacionando com mulheres por ter enjoado de homens”. A servidora não se sentiu confortável para um retorno.

A radialista Ariel*, de 36 anos, moradora de Aracaju (Se), foi somente uma vez ao ginecologista. O suficiente, segundo ela, para nunca mais querer voltar. O motivo é que durante a realização de um exame ginecológico, houve a inserção desnecessária de um espéculo de tamanho inadequado. “O problema foi que eu só tinha tido penetração com dedo e ele não me perguntou e nem explicou como seria o exame. Me senti violada. Foi terrível. Foi péssimo. Eu nem soube como falar na hora, saí imediatamente depois. Nunca mais voltei”, desabafa.

Depois disso, Ariel contou que passou muito tempo ansiosa e pensando obsessivamente nessa violência, a ponto de desenvolver pânico.

Heteronormatividade e invisibilidade
Ilustração: Shutterrstock

Grande parte dos atendimentos de saúde são orientados pelas crenças da heteronormatividade. Nessa lógica, a função e a validação da sexualidade da mulher se dá pela penetração com homens cisgêneros. 

Aqui, a violência e o constrangimento contra as mulheres que se relacionam com mulheres são simbólicos e colaboram com a invisibilidade social dessas pessoas. “O relacionamento sexual entre mulheres é sempre colocado naquele lugar de não-existência”, afirma a assistente social  e ativista de movimentos sociais baiana, Vânia Mota, de 29 anos.  

“Eles já chegam assim: ‘você tem relações?’ ‘Usa camisinha?’ ‘E seu parceiro?’. Todos já presumem que você é hétero. Dependendo da pessoa eu fico meio receosa de falar minha orientação. Porque a gente tá sozinha na sala com uma pessoa que a gente não conhece. Não sabe como vai ser a reação, principalmente quando é homem”, relata a professora Camila Rezende, de 31 anos, que reside na cidade de Itabaiana (Se).

Para as mulheres bissexuais, muitas vezes a violência também ganha a nuance de um julgamento moral. “Você percebe na cara o preconceito. Já passam exames de ISTs como bissexualidade fosse promiscuidade e eu fosse ‘grupo de risco’”, compartilha a baiana Ananda César, 32 anos, enfermeira.

Para as mulheres pretas e periféricas, as violência acontecem antes mesmo de sentar-se na cadeira do consultório. “O Sistema Único não garante que você tenha um cuidado com especialistas por toda dificuldade de marcar uma consulta, de atendimento e de tratamento”, afirma Vânia. 

A pedagoga e ativista social das questões raciais e lésbicas, Janda Mawusi, 49 anos, moradora de Salvador (Ba) concorda. “Se no atendimento particular a mulher preta e lésbica já passa por isso, se for você para o público é pior. Porque você já passa por uma violência desde a tentativa de marcar uma consulta. Chega lá você espera horas para ser atendida enfrentando olhares e muitas vezes falta de acolhimento na recepção. Entra no consultório e o profissional ainda faz perguntas que te constrangem. Você sai dali arrasada. São várias violações de direitos”, relata.

Como denunciar e combater os assédios
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Janda Mawus defende que o caminho para o combate aos assédios e constrangimentos contra mulheres lésbicas e bissexuais passa pela tomada de consciência. “Ou a gente entende o nosso lugar ou a gente vai passar a vida inteira reclamando”, afirma. 

Para fazer uma denúncia formal, Naiara Bispo orienta que sejam coletadas o maior número de provas possíveis. Em geral, a orientação é que as denúncias sejam feitas nos órgãos e conselhos responsáveis pelo exercício de cada profissional de saúde. Se for médico, também é possível denunciar a conduta inapropriada pelo portal on-line do Conselho Federal de Medicina

*Nomes fictícios. Algumas mulheres que fizeram relatos para esta reportagem optaram por não se identificar.

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