Por Daiane Oliveira
Fotos: Giovanni Quintella Bezerra – redes sociais | Joanna Ribeiro Zimmer – Solon Soares – Assembleia Legislativa de Santa Catarina |Pedro Guimarães – Marcelo Camargo – Agência Brasil
Depois de acompanharmos uma juíza questionar a uma criança de 11 anos se não aguentaria “mais um pouquinho” gestar o feto fruto de uma violência sexual, vimos a promotora deste mesmo caso buscar o feto após o aborto legal para iniciar uma investigação sobre a causa da morte. Isso depois da juíza ter mantido a menina em um abrigo distante da família na tentativa de impedir o aborto. O caso aconteceu em maio de 2022, mas foi divulgado no começo de junho.
Já no dia 25 de junho, o Brasil viu o hediondo episódio contra a atriz Klara Castanho, jovem de 21 anos, vítima de violência sexual que também resultou em uma gravidez. Após o nascimento, de forma totalmente legal e assistida, houve a entrega voluntária do bebê para a adoção.
Mesmo com o processo de entrega legal ou voluntária previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sendo um meio seguro e indicado para adoção, a jovem que foi vítima de várias violências com o vazamento das informações e precisou reviver suas dores com o julgamento popular e exposição. Não houve o direito à privacidade e nem respeito para com uma vítima de violência sexual.
No dia 28 de junho, uma série de denúncias expuseram assédio dentro da Caixa Econômica Federal. Pedro Guimarães, ex-presidente da Caixa Econômica Federal, pediu exoneração do cargo após ser acusado de assédio sexual e moral. Vítimas relataram conduta inadequada e situações desconfortáveis em que foram assediadas pelo então diretor. Uma funcionária, mantida em anonimato pelo Ministério Público, afirmou que durante uma viagem de negócios, o ex-presidente teria dito “e se o presidente quiser transar com você?” enquanto se exibia na sauna do hotel.
O vice-presidente da Caixa, Celso Barbosa, foi acusado de acobertar os assédios e também pediu demissão. Outros executivos da Caixa seguiram o mesmo caminho. Uma investigação apura a responsabilidade de todos, e o que é mais interessante, o presidente Bolsonaro indicou a economista Daniella Marques ao cargo. Na posse, inclusive, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PL), abruptamente retirou das mãos de Daniella a caneta que usava e entregou uma da marca BIC. Em mais um gesto grosseiro e misógino, Bolsonaro é sempre um exemplo de como não tratar uma mulher.
Por fim, mas não menos chocante, o médico Giovanni Quintella Bezerra foi preso e autuado em flagrante, na madrugada desta segunda-feira (11), por estupro de mulheres grávidas anestesiadas para o procedimento de cesariana. O estuprador foi filmado por colegas enfermeiras e técnicas cometendo o crime. A equipe desconfiou do anestesista por aplicar uma sedação muito alta nas pacientes. O crime aconteceu no Hospital da Mulher em Vilar dos Teles, São João Meriti, município na Baixada Fluminense (RJ). Sendo que, após a prisão o médico ganhou milhares de seguidores em uma rede social.
Sabem qual a relação de todos esses casos? A cultura do estupro e a normalização de mulheres como objetos que podem ser “usados” por homens quando eles quiserem. A criança de 11 anos e Klara Castanho foram expostas, julgadas, condenadas publicamente por buscarem os meios seguros e legais de interrupção ou doação de gestações oriundas de violências. As funcionárias da Caixa estão em anonimato para que não haja o mesmo linchamento público e as vítimas do anestesiologista tiveram um momento extremamente importante em suas vidas transformado em um ato de violência, abuso, de dor.
Todas as vítimas e seus familiares passaram por violência que é física, psicológica e deixa marcas pelo resto da vida. Quando uma mulher ainda criança, adolescente ou adulta é vítima de violência sexual, vê seus algozes impunes, e ainda vivencia lixamento público, temos a certeza que o patriarcado e o conservadorismo mandam em nossa sociedade. Claro que mandam, se não mandassem não teríamos tão forte a cultura do estupro. Inclusive, introjetada de uma forma que até nas músicas ouvimos “Enche o copo e deixa a birita bater. Pra que? Pra ela descer, descer”… Parece mesmo uma boa ideia embebedar alguém em uma festa?
Essa mesma sociedade não se revolta em massa quando alguém ameaça uma criança de 5 anos de estupro, como aconteceu com a filha da ex-deputada federal Manuela D’ávila. Nem está preparada para promover mudanças profundas e significativas.
Para as mulheres negras ainda há o racismo e as imagens de controle que colocam seus corpos na posição de “mulata tipo exportação”, uma mulher hipersexualizada que não pode dizer “não”. É um duplo atravessamento que acentua as violências.
Estupro é um crime ligado ao poder e dominação. O estuprador acha que pode subjugar a “outra” e ainda possui o suporte de uma sociedade que apoia a objetificação e violências contra os corpos femininos.
Em 2021, o Brasil registrou um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas, segundo um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Isso significa que mais de 56 mil crianças, adolescentes e mulheres foram estupradas e registraram denúncias. No entanto, muitas vítimas são coagidas, sentem vergonha, ou não recebem apoio dos familiares e por isso não denunciam seus agressores, gerando uma enorme subnotificação do número de casos.
E quem pode dizer que essas vítimas estão erradas? Para que sejam expostas como Karla? Para que sejam separadas das famílias por dias como a criança de 11 anos? Para que passem e revivam por muitas violências e julgamentos de uma sociedade que culpa direta ou indiretamente a vítima? Para serem questionadas por um agente policial se não estavam com “roupa curta” ou ouvir de um promotor que a foto na rede social era sugestiva, como aconteceu com a Mariana Ferrer?
Precisamos repensar as estratégias de proteção para as mulheres, crianças e todos os corpos que passam por violência em nosso país. Não podemos esquecer que pessoas do sexo masculino, quando não performam a masculinidade como a própria sociedade machista prega, ou quando subjugados em um determinado grupo, também estão suscetíveis ao estupro. Por isso, as estratégias que derrubam o patriarcado, o machismo e a misoginia devem ser atreladas às formas de acolher, cuidar, mudar uma estrutura, uma cultura que prevê a dominação pela violência como solução.
É preciso que haja uma revolta social, uma revolução que não seja só feminina para abraçar todos que lutam pelo mínimo que são os direitos à vida, ao próprio corpo, respeito à liberdade e sobretudo o combate à violência. É fundamental que essa revolta se espalhe para que não haja mais o pacto de proteção masculina e nem uma masculinidade tóxica na abordagem com mulheres e consigamos impedir os estupros e outras violências de acontecerem, não apenas punir depois que acontecem.
Vamos, juntas, juntos e juntes na luta por uma sociedade que compreenda as mais profundas violências e entenda a necessidade de fazer com que parem. Só juntes conseguiremos!