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Adolescente morre eletrocutado e caso expõe negligência e necropolítica urbana em comunidade quilombola na Bahia

Ítalo Cauã foi vítima de uma descarga elétrica após o rompimento de um fio de alta tensão, que havia sido alvo de reclamações por parte de moradores de Acupe à Neoenergia durante três dias antes do ocorrido

Por Karla Souza

No dia 13 de julho, o distrito quilombola de Acupe, em Santo Amaro (BA), foi palco de uma tragédia que expõe a árdua realidade enfrentada por comunidades periféricas negras e tradicionais no país. Ítalo Cauã das Chagas Santos, um adolescente de 14 anos, morreu eletrocutado após o rompimento de um fio de alta tensão do poste de energia durante a chuva. 

Familiares e amigos de Ítalo realizaram um protesto ainda no dia de seu falecimento para exigir a responsabilização da Neoenergia Coelba, concessionária responsável pelo serviço de energia no estado, e pressionar as autoridades por justiça. 

Na manhã da tragédia, o fio rompido caiu sobre o guarda-chuva que Ítalo carregava, provocando sua morte, enquanto ele buscava roupas para “Caretas de Acupe”, manifestação cultural popular criada no distrito em 1850. Equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) foram acionadas, mas ao chegar ao local, o jovem já estava sem sinais vitais. O Departamento de Polícia Técnica (DPT) realizou a remoção do corpo. 

Segundo relato de Joelma Ferreira, tia de Ítalo, diretora-presidente do Instituto Rainhas do Mar e doutoranda em urbanismo, a fiação que causou o acidente já apresentava curto-circuito há três dias, e solicitações foram feitas à Neoenergia Coelba para conserto. Porém, nenhuma medida efetiva foi tomada para resolver o problema.

“Perder Ítalo dessa forma, por negligência e descaso, é uma dor que transcende a família”, conta Joelma. A tia do garoto conta que Ítalo era um  menino cheio de sonhos, uma referência para seu irmão mais novo Islã e para toda a comunidade e queria ser jogador de futebol, mas também tinha planos de ser médico.

Imagem: Arquivo Pessoal

Além da falha grave da concessionária, Joelma aponta também a ausência do Estado. “A gente chama de necropolítica urbana quando o Estado se ausenta e mantém a precariedade das infraestruturas urbanas nesses territórios negros e nesses territórios quilombolas. Pensamos geralmente no genocídio letal por arma de fogo, mas há outros genocídios que ocorrem e que não são lidos dessa forma”, denuncia. Ela afirma que é inaceitável que a Neoenergia Coelba tenha sido alertada sobre o risco e, mesmo assim, não tenha enviado técnicos para consertar o poste que já apresentava risco. 

Em vídeo que circula nas redes sociais, um morador não identificado delata o descaso com o território e o falecimento do adolescente. “Foi cobrado diversas vezes aqui em Acupe… Ó o descaso de agente público, de vereador, de deputado, de todo mundo. A situação que se encontra hoje, um jovem morto, e isso aqui não é propaganda não, nem pra fazer campanha de político, isso aqui é uma morte que aconteceu dentro do meu município.”

Necropolítica Urbana

Para o filósofo camaronês Achille Mbembe, a necropolítica é o modo como o poder decide quem deve viver e quem pode morrer. Isso não depende apenas do Estado, mas de diferentes formas de dominação que usam o medo, a violência e a ideia de um inimigo para justificar o controle sobre a vida. 

No contexto urbano, isso se expressa na forma como a cidade é organizada, quem tem acesso a infraestrutura, serviços públicos, moradia digna e segurança, e quem é excluído disso tudo. A necropolítica urbana cria fronteiras dentro da própria cidade, definindo quem é tratado como cidadão e quem é descartado. Os corpos negros, periféricos e quilombolas passam a ser vistos como ameaças ou como vidas que podem ser negligenciadas. 

Em 2024, o Brasil somou 685 acidentes com a rede elétrica, segundo dados da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee). Foram 257 vidas perdidas, sete a mais que no ano anterior, além de 224 pessoas com lesões graves e 204 com ferimentos leves. As mortes se concentram nesses cenários: 65 durante construções, 37 por contato com fios soltos no solo, 29 em tentativas de furto, 20 em áreas agrícolas e 16 em ligações clandestinas.

O Nordeste aparece como a segunda região com mais registros de fatalidades por meio de rede elétrica: 193 acidentes, sendo 67 fatais e 55 com ferimentos graves. A região que liderou o ranking de acidentes foi a Sudeste, totalizando 262 ocorrências, sendo 86 de vítimas fatais e 81 lesões graves.

Joelma Ferreira, tia de Ítalo, diretora-presidente do Instituto Rainhas do Mar e doutoranda em urbanismo – Imagem: Arquivo Pessoal

“Não podemos aceitar que a morte do Ítalo seja tratada como mero acidente. É um sintoma claro do racismo ambiental e da negligência estatal. Essa comunidade vive um ciclo de descaso”, ressalta Joelma.

Pronunciamento e atuação da Neoenergia Coelba

Após ser acionada pelo Portal InstantBA, a Neoenergia Coelba enviou nota oficial em que afirmou ter enviado equipes para o local e que prestará assistência à família da vítima. A empresa, no entanto, atribuiu como possível causa da tragédia a existência de “ligações clandestinas” na região. “Em avaliação preliminar, foi identificado que no local existem muitas ligações clandestinas (gatos de energia), que podem ter contribuído para sobrecarga da rede e ter causado o acidente”, diz trecho da nota.

Imagem: Neoenergia Coelba

“Por ser uma comunidade periférica e quilombola, eles implantam os serviços de qualquer jeito, sob a justificativa de que é uma área com uso predominante de ‘gato’ de energia. Ou seja, quem morreu é também responsabilizado pela própria morte. A culpa, segundo eles, não é da concessionária”, contrapõe Joelma.

A doutoranda também relata que a iluminação na região é precária e explica que o tipo de solo da região, massapê, não tem resistência suficiente para sustentar os postes, o que compromete sua estabilidade com o tempo. O solo cede e o que acaba mantendo a estrutura em pé é a própria tensão dos fios elétricos. Segundo a pesquisadora, a rede foi implantada sem que houvesse qualquer estudo prévio, o que revela a ausência de planejamento adequado para a infraestrutura de energia na comunidade.

A responsabilidade pelas falhas na prestação de serviços públicos, como é o caso da infraestrutura elétrica em comunidades periféricas, está prevista na Constituição Federal de 1988. Segundo o parágrafo 6º do artigo 37, tanto o Estado quanto empresas contratadas para executar serviços públicos, como concessionárias e permissionárias, devem responder por danos causados a terceiros por seus agentes.

No caso de empresas que prestam serviços, como a Neoenergia, de acordo com a Lei nº 8.987/1995, elas possuem a chamada responsabilidade objetiva, ou seja, devem reparar os danos independentemente de culpa. Em caso de omissão ou falha da concessionária, o Estado responde de forma subsidiária.

Ações por justiça e infraestrutura digna

O Instituto Rainhas do Mar tem atuado diante da perda de Ítalo Cauã. Joelma Ferreira afirma que estão em plena mobilização, construindo ações em três frentes principais: jurídica, comunitária e política, todas guiadas pela autonomia e pelo compromisso com a memória de Ítalo Cauã e com a segurança da comunidade.

Associação de Formação Esportiva GP presta homenagem a Ítalo Cauã – Imagem: Reprodução

Na frente jurídica, a família já recebeu a recomendação de um advogado e o processo está sendo acompanhado. As demais frentes estabelecem a construção de um projeto de fortalecimento da infraestrutura elétrica na região, que está sendo elaborado pelo próprio Instituto. A proposta inclui ações de comunicação e campanhas educativas, com foco na segurança pública e no direito à energia de qualidade. 

A diretora-presidente da organização ainda questiona o uso do termo “transição energética justa” enquanto comunidades como a do Acupe seguem submetidas a redes elétricas precárias. “Não conseguimos mais viver sem energia, mas também não conseguimos viver com a energia que tem sido imposta à nossa realidade. É preciso pensar na segurança das pessoas.”

Para o Instituto Rainhas do Mar, honrar a memória de Ítalo é também garantir que nenhuma outra vida seja interrompida pela necropolítica urbana e pela pobreza energética. 

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