Após 59 anos da ditadura militar, tortura policial contra a população negra permanece alimentando o genocídio no Brasil

A Ditadura Militar de 1964 durou 21 anos no Brasil atrelada à falsa promessa de trazer estabilidade econômica e social ao país. Com o discurso de perseguição a uma - infundada - ameaça comunista, o regime abriu alas para uma sequência de torturas, censuras e assassinatos que encontravam respaldo em leis e decretos da época.

Por Elizabeth Souza*

Imagem: Jesus Carlos via Memorial da Democracia

A Ditadura Militar de 1964 durou 21 anos no Brasil atrelada à falsa promessa de trazer estabilidade econômica e social ao país. Com o discurso de perseguição a uma – infundada – ameaça comunista, o regime abriu alas para uma sequência de torturas, censuras e assassinatos que encontravam respaldo em leis e decretos da época. Vendendo a falsa imagem de uma democracia racial, o golpe de 64 agia com mãos de ferro contra todas as pessoas que se opunham ao regime militar, e indiscriminadamente, contra a população negra em geral. Passados 59 anos do período ditatorial, as perseguições seguidas de assassinatos permanecem sendo uma constante na vida da população negra brasileira.

O genocídio contra a população negra no Brasil começa durante o período colonial e se estratifica mesmo após a abolição da escravatura no país, em 1888. Diversos episódios posteriores, que marcaram os capítulos da história brasileira, serviram para impulsionar políticas de morte contra a população negra, sendo a Ditadura Militar uma das mais sangrentas. Um de seus principais alvos eram os militantes do movimento negro vistos como ameaça à segurança nacional.

“O racismo sempre existiu no país e nos anos de 1940, negros e negras, que faziam parte do movimento negro, eram vigiados e reprimidos pela polícia política que considerava as organizações como subversivas e o golpe de 64 dá continuidade a esse pensamento perverso”, explica Ilma Fátima de Jesus,  doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e coordenadora da Comissão de Mulheres do Movimento Negro Unificado (MNU) no Maranhão. 

O surgimento do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), em 1978 – que depois se tornaria Movimento Negro Unificado – deocorre de um assassinato cometido pela polícia militar contra um jovem operário negro em São Paulo naquele ano. Robson Silveira da Luz, de apenas 21 anos, foi acusado de roubo e conduzido ao 44º Distrito Policial, de Guaianazes,  Zona Leste de São Paulo, onde foi cruelmente torturado e morto. “Eles me privaram da dignidade”, essas teriam sido algumas palavras proferidas por Robson em seu leito de morte, como narra uma das saudosas figuras do MNU, Lélia Gonzalez, no ensaio intitulado “O Movimento Negro Unificado: Um novo estágio na mobilização política negra”.

Durante o período da ditadura, o Brasil recebeu fortes influências da cultura negra norte-americana, como os bailes souls, que contribuíram no processo de valorização da negritude. Além disso, as lutas políticas dos Estados Unidos pelos direitos civis dos negros e as lutas de libertação de países africanos também foram outros fatores que adentraram as fronteiras brasileiras e fortaleceram o movimento negro. Essas eram táticas de sobrevivência e resistência em meio a um regime explicitamente genocida

Coordenadora de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, Gabrielle Abreu, em sua dissertação de mestrado intitulada “O Negro na Ditadura: um estudo acerca da invisibilidade das experiências negras nas narrativas sobre o regime” menciona um documento apresentado pelo MNU durante o Congresso Nacional do Comitê Brasileiro pela Anistia, em 1979, como uma das estratégias de combate à ditadura. “O papel do aparato policial do Estado no processo de dominação do negro e a anistia” tratava da violência policial contra negros e negras no Brasil, bem como denunciava as péssimas condições dos presídios brasileiros, já ocupados majoritariamente por pessoas negras. “Parte daí a premissa levantada até os dias atuais por determinados segmentos do movimento negro de que ‘a perseguição policial ao negro não é uma perseguição comum, mas uma perseguição política’” , explica Abreu em um trecho da dissertação. 

Os “Esquadrões da Morte” ganharam amplo espaço durante a ditadura com passe livre para matar pessoas negras periféricas. Esses esquadrões “eram formações ilegais que reuniam policiais e ex-policiais, visando acabar fisicamente com a criminalidade, não raro associada com o racismo, dando origem a assassinatos de afro-descendentes”, como explica Karin Sant’Anna Kössling, em sua dissertação de mestrado “As lutas-anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP“. Jornais da época denunciavam a forma arbitrária como a polícia agia, a exemplo do boletim informativo do MNU, “Nêgo”, cuja edição nº 3, de março de 1982, trazia o título “A próxima vítima pode ser você” para denunciar a violência policial pedindo a troca do comando da Polícia Militar na Bahia. “O povo não deve aceitar calado que lhe matem”, diz trecho do texto.

Trecho do boletim informativo do MNU denunciando a violência policial na Bahia, em 1982 (Foto: Reprodução/Acervo Projeto Negritos)

Embora a ditadura tenha findado e um dos marcos que selou essa mudança política tenha sido a promulgação da Constituição Federal de 1988 – chamada de “Constituição Cidadã” por Ulysses Guimarães – não houve uma efetiva ruptura com os retrocessos e violências trazidas e intensificadas com o período do regime militar. “O Brasil carrega ainda uma marca do genocídio que faz com que milhões de negras e negros continuem a serem vitimados pelo racismo”, alerta Ilma, que complementa: “Pela discriminação racial e preconceito racial, além do desrespeito, incluindo as suas formas mais cruéis e violentas que eliminam vidas negras”. Palavras que ganham contornos nos números que denunciam a violência policial que permanece ceifando vidas negras no Brasil.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 mostraram que 6.145 pessoas foram mortas em intervenção policial no Brasil, em 2021. Desse total, 84,1% das vítimas eram negras. Números que ganham uma proporção ainda maior à medida que a região vai ficando mais preta, como o Nordeste. Levantamento do Observatório de Segurança, publicado em novembro de 2022, mostrou que na Bahia 616 pessoas foram assassinadas em intervenções policiais. 603 eram negras, ou seja 97,9% das vítimas. Em Salvador, dos 299 mortos, apenas uma pessoa não era negra. No estado de Pernambuco, 96,3% dos mortos nas intervenções eram negros, na capital Recife esse índice sobe para 100%.

“A violência cometida contra a população negra pelo Estado brasileiro não cessou com a conquista da democracia”, frisa Ilma. “Se acompanharmos o noticiário, casos de racismo que pessoas negras sofrem seguidos de imobilização da vítima sem poder se defender até não mais poder respirar e se calar diante das atrocidades permanecem ocorrendo na sociedade”. São diversos os casos que dão nomes às vítimas da política genocida praticada pelo Estado brasileiro, uma herança colonial que tem resistido ao tempo.

 Em 2014, Cláudia Ferreira, baleada pela polícia no Rio de Janeiro, no Morro da Congonha, e morta após ser arrastada por mais de 300 metros pela viatura policial. Em 2019, Evaldo dos Santos morreu após ter seu carro atingido por ao menos 80 tiros em um ação do Exército na região da Vila Militar, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Em 2022, policiais militares mataram três jovens em Salvador. O caso envolvendo Alexandre Santos dos Reis, 20 anos; Cleverson Guimarães, 22 anos; e Patrick Souza, 16 anos, ficou conhecido como a “Chacina da Gamboa“. Ainda em 2022, no estado de Pernambuco, em Porto de Galinhas – Litoral Sul do estado – uma operação da polícia militar interrompeu a vida de Heloysa Gabrielle, de apenas 6 anos. Além da cor preta das vítimas, esses casos têm em comum a isenção de um sistema que não pune seus aliados.

Neste 31 de março de 2023, quando a Ditadura Militar completa 59 anos, vale lembrar que “Abaixo a ditadura” foi uma das frases mais entoadas nas lutas que pediam o fim do período ditatorial. O regime caiu, no entanto as dinâmicas violentas e repressivas continuam ocorrendo pelas mãos de sujeitos fardados que, outrora conhecidos por esquadrões, permanecem disseminando morte e crueldade contra negros e negras no Brasil.

*Essa reportagem foi produzida pela Rede de Mulheres Negras do Nordeste e Articulação de Organizações de Mulheres Negras (AMNB) no âmbito da 5ª edição do Março de Lutas.

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