Por Andressa Franco
O último final de semana foi marcado por uma série de atos em referência aos oito anos do assassinato de Luana Barbosa, mulher negra, lésbica e periférica, morta após ter sido espancada por policiais militares de Ribeirão Preto (SP). Coletivos em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e Santa Catarina organizaram atividades como varal contra o lesbocídio, roda de conversa, mostra artística, marchas, cinedebate, sarau contra o lesbocídio, entre outras.
Luana tinha 34 anos no dia 13 de abril de 2016, quando foi abordada por policiais no Jardim Paiva, onde morava, na zona Oeste da cidade, enquanto levava o filho, então com 14 anos, para um curso de informática. Ela havia parado a moto para cumprimentar um amigo, ainda perto de casa, e se recusou a ser revistada pelos agentes André Donizete Camilo, Douglas Luiz de Paula e Fábio Donizete Pultz. Conforme recomenda o artigo 249 do Código de Processo Penal, a busca pessoal em mulheres por agentes de segurança deve ser feita preferencialmente por outra mulher, o que foi exigido por Luana.
No entanto, o pedido foi negado pelos policiais, que a espancaram na frente do seu filho. Após a violência nas ruas, ela ainda foi levada para 1º Distrito Policial, onde o caso foi registrado como lesão corporal e desacato à autoridade. No dia seguinte, muito machucada, Luana deu entrada no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, onde permaneceu internada até o dia 13 de abril, quando faleceu, em consequência de um quadro de isquemia cerebral e traumatismo craniano ocasionado pela brutalidade do espancamento.
Luana já tinha cumprido pena no sistema prisional, e trabalhava como terceirizada em um buffet. Mas seus antecedentes foram usados pela polícia para justificar as agressões brutais.
Família e movimentos sociais foram catalizadores para avanços no processo
Entre 2021 e 2022, o Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (NJRD – FGV) se dedicou a analisar oito casos de violência perpetrada por agentes da segurança pública ou privada contra pessoas negras. Entre eles, o caso de Luana Barbosa. O trabalho resultou na pesquisa “Desafios da Responsabilidade Estatal pela Letalidade de Jovens Negros: Contextos Sociais e Narrativas Legais no Brasil (1992-2020)”.
Entre os critérios para escolher as histórias, estavam o envolvimento de movimentos sociais, a não condenação dos agentes envolvidos e a repercussão midiática.
“Desde o momento dos fatos, a família da Luana esteve em contato com o movimento feminista negro de Ribeirão Preto e com as mídias negras. É um caso que tem um andamento processual muito em função da atuação dos movimentos sociais e da pressão midiática, ganhando até repercussão internacional”, lembra Inara Firmino, doutoranda em Direito pela PUC do Rio de Janeiro e pesquisadora do Núcleo, que classifica a atuação da família e dos movimentos sociais como catalizadores que impulsionam a justiça. “Esses familiares fazem o papel da polícia e do Ministério Público (MP) no sentido de denunciar, reunir provas para apresentar à mídia.”
Mecanismos de blindagem
Apesar de toda a pressão, Inara ressalta que existem muitos mecanismos de blindagem para que agentes de segurança não sejam responsabilizados. “No caso da Luana, a morosidade processual é muito em decorrência desses mecanismos”. O que pode ser observado nas voltas que o processo deu no decorrer desses oito anos.
Em maio de 2016 o pedido de prisão temporária para os policiais envolvidos foi negado pelo juiz Luiz Augusto Teotônio, da 1ª Vara do Júri de Ribeirão Preto, com a alegação de que não se tratava de um crime contra a vida. Na época, o caso foi encaminhado para a Justiça Militar de São Paulo (JMSP). Na decisão, Luiz Teotônio ainda determinou que o caso passasse a ser investigado como lesão corporal seguida de morte.
Para o promotor Eliseu Berardo Gonçalves, ainda em 2016, o crime deveria ser tratado como homicídio e julgado pela Justiça comum. Ele solicitou ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que o inquérito voltasse ao 3º Distrito Policial de Ribeirão. Em 2021, a decisão do Tribunal de Justiça foi de que os policiais iriam a júri popular, mas por homicídio simples. A decisão fez com que as possíveis penas, que poderiam ser de 12 a 30 anos de prisão em caso de homicídio qualificado, caíssem para 6 a 20 anos.
Também em 2021, a ONU pediu informações ao governo brasileiro sobre a investigação do assassinato de Luana. Isso porque Luana Barbosa foi assassinada em abril de 2016, mas apenas em 2018 a denúncia foi oferecida pelo MP.
Em agosto de 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) atendeu o recurso da acusação e reverteu a sentença que havia retirado as agravantes do processo. Agora, os PMs vão ser julgados por homicídio triplamente qualificado por motivo torpe, emprego de meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Se condenados, podem pegar até 30 anos de prisão.
Apesar da decisão do STJ ter sido proferida a oito meses, o júri popular ainda não tem data marcada. “Toda essa movimentação processual, toda essa burocracia da Justiça faz com que até hoje esses policiais não tenham sofrido qualquer tipo de responsabilização no processo criminal. Do fato até o ato de responsabilização, várias pedras vão sendo postas no caminho”, acrescenta Inara.
Negação do racismo e lesbofobia no caso
Ainda em 2016, antes do caso completar um mês, a ONU Mulheres e o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), divulgou uma nota solicitando do poder público brasileiro a investigação imparcial e com recorte de gênero e raça na situação de violências cometidas contra Luana Barbosa.
“A morte de Luana é um caso emblemático da prevalência e gravidade da violência racista, de gênero e lesbofóbica no Brasil. São inaceitáveis quaisquer alegações para justificar as violências que vitimaram fatalmente Luana, as quais evidenciam a conivência e/ou a impunidade com agressores quer sejam agentes públicos ou indivíduos particulares”, dizia trecho da nota.
Para Inara, a violência interseccional presente no caso de Luana é indiscutível. “Dificilmente os policiais a teriam parado se ela fosse branca e estivesse em um bairro nobre, com outro tipo de vestimenta”. A abordagem policial deve acontecer por fundada suspeita, o que a pesquisadora contesta no caso de Luana. “Se tivessem a certeza de que a moto da Luana tinha sido roubada, ou que ela estava com drogas, então haveria a abordagem. E quando a Luana se recusa a ser revistada, eles deveriam tê-la conduzido à delegacia para fazer a abordagem correta e a revista por uma agente mulher.”
Embora o racismo e a lesbofobia na violência contra Luana estejam evidentes, os relatos da doutoranda sobre as audiências do caso revelam que o processo judicial não seguiu a recomendação da ONU, de realizar a investigação considerando o recorte de gênero e raça.
“Eu lembro do procurador e desembargador falarem: ‘A gente não está aqui para debater a questão racial. Essas questões não importam.’ Eu quero acreditar que quando o STJ retoma essas qualificadoras, é porque estão vendo que não há como desassociar ao fato de Luana Barbosa ser uma mulher negra, lésbica e periférica”, relata Inara.
Apesar da importância da decisão do STJ, Inara chama atenção para a necessidade da manutenção de uma postura de vigilância diante do caso.
Nesse sentido, a pesquisadora reconhece o papel das mídias negras no acompanhamento do caso no decorrer dos anos. O estudo do NJRD fez o levantamento de todas as notícias dos oito casos analisados ao longo dos anos, evidenciando as diferenças de abordagem entre as mídias negras e hegemônicas.
“Luana, bem como os adolescentes de Paraisópolis ou o João Alberto, não eram colocados enquanto vítimas, mas de forma estereotipada. Sempre com destaque para a questão das drogas. A imagem de Luana era associada à uma pessoa perigosa. A notícia era: ‘mulher negra suspeita de tráfico é espancada por policiais.’”, critica.
Enquanto o júri popular não ganha data, a doutoranda insiste na importância do monitoramento.
“Precisamos saber a resposta do judiciário brasileiro para esse caso. Não tem como ter certeza de que a partir dessa resposta do STJ os policiais vão ser condenados e o sistema de justiça vai abordar o debate racial e interseccional, porque não vai”, finaliza.