Perfilamento racial: especialistas explicam ineditismos e contradições do julgamento que segue suspenso

A votação tem sido encarada como uma oportunidade para ampliar o debate. No entanto, o movimento negro sempre denunciou o racismo nas abordagens policiais.

A votação tem sido encarada como uma oportunidade para ampliar o debate. No entanto, o movimento negro sempre denunciou o racismo nas abordagens policiais.

Por Andressa Franco
Imagem: Rovena Rosa/Ag. Brasil

Segue suspenso no Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento do habeas corpus (HC) 208.240, que pede anulação da condenação contra um homem negro pelo porte de 1,52g de cocaína. A votação do “perfilamento racial”, teve início no dia 3 de março com os posicionamentos dos ministros Alexandre de Moraes, André Mendonça e Dias Toffoli, que divergiram do relator do caso, Edson Fachin, e votaram contra o HC.

Na sessão do dia 8 de março, Fachin disse que “se a referência à cor da pele fosse supérflua, ela não estaria no auto de prisão flagrante e nem seria o primeiro elemento indicado pelo policial no boletim de ocorrência”. Ainda assim, no mesmo dia, o ministro Kassio Nunes Marques também votou contra. Com o placar em 4×1, o próximo a se manifestar seria Luiz Fux, que pediu vista (mais tempo para analisar o caso).

O motivo do pedido de HC pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) partiu de um entendimento da instituição de que o réu foi alvo de racismo pelos policiais que o abordaram. Isso porque, a legislação prevê que só é possível revistar pessoas sem mandado judicial quando houver “fundada suspeita”. De acordo com a defesa, isso não teria acontecido, já que ele que estava parado ao lado de um carro no momento da abordagem. Sem fundada suspeita, as provas colhidas devem ser consideradas ilícitas, o que anularia a condenação.

Além disso, o réu foi condenado à reclusão de sete anos, 11 meses e oito dias por tráfico de drogas portando apenas 1,52g da droga, que declarou ser para consumo pessoal. É uma pena maior que a mínima prevista para homicídio simples: seis anos.

Como o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) negou o recurso, a defesa recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). O STJ chegou a reduzir a pena para dois anos e 11 meses em regime aberto, mas não anulou a sentença por não acatar a tese de que houve “perfilamento racial.” O perfilamento racial acontece quando agentes de segurança submetem pessoas a revistas ou investigações com base em critérios genéricos como raça, cor, etnia, descendência ou nacionalidade.

Os ineditismos do julgamento

Com o julgamento chegando ao STF, o tema ganhou as redes sociais, e até reuniu personalidades negras em campanha contra o perfilamento racial. A votação tem sido encarada como uma oportunidade para ampliar o debate. No entanto, o movimento negro sempre denunciou o racismo nas abordagens policiais. Desta forma, o que há então de “inédito” agora?

Para o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), esse caso demonstra a importância de racializar os debates, “pois há muito juristas negras e negros, baseados nos estudos dos movimentos negros, já apontavam situações como essa em estudos científicos”. Para o Instituto, o perfilamento racial é uma espécie de fishing expedition racial. Ou seja, uma pesca probatória em que o agente “lança suas redes com a esperança de pescar qualquer prova para subsidiar uma futura acusação ou para tentar justificar uma ação já iniciada”.

Para Gabriela Ramos, mestra em Direito, a tarefa do STF é dizer algo óbvio. Isso porque, alguns debates se tornaram óbvios para movimentos e intelectuais negros, mas as principais instituições do país “permanecem fazendo as discussões de forma muito superficial”, afirma a especialista. Por isso mesmo há uma preocupação, já que se trata de uma corte formada exclusivamente por homens e mulheres brancos.

Latuff – Divulgação
Por que estamos perdendo?

Para os ministros que votaram contra o recurso, não há evidências o suficiente para comprovar perfilamento racial no caso apresentado.

Moraes, por exemplo, argumentou que “o perfilamento racial infelizmente existe e faz parte de uma chaga que é o racismo estrutural”. Porém, defendeu que “esse caso é muito ruim” para se reconhecer a existência de perfilamento. “Eu tomei o cuidado de verificar que na mesma semana dezenas de abordagem ocorreram contra brancos e contra negros no mesmo local e com o mesmo procedimento”, completou o ministro.

Apesar da declaração do réu a respeito do consumo pessoal e da quantidade ínfima de drogas, Kassio Nunes Marques disse: “Imaginemos um traficante um pouco maior em um caso como esse absolvido por perfilamento”. Vale ressaltar, que a defesa trata do princípio da insignificância e do desenquadramento do crime como tráfico de drogas.

 “São vários os motivos que justificam esse placar: inicialmente, o total desconhecimento acerca dos estudos que envolvem o racismo por parte dos ministros”, explica o IDPN. O Instituto defende que se trata de algo que começa na academia, sem acesso a materiais escritos por pessoas negras desde a graduação, e se enraíza no sistema judiciário.

“Esse placar é reflexo do atraso com o qual o judiciário brasileiro passa a se debruçar de forma minimamente séria sobre as relações raciais nesse país”, pondera Gabriela.

Jovem negro é abordado em protesto contra o genocídio da população negra no Rio de Janeiro- Imagem: Patrick Mendes

Armadilha: “Juridicamente, isso é uma aberração”

Pesquisadora e doutoranda, Gabriela chama atenção para outro “detalhe”. “É curioso que eles sejam contrários a conceder o habeas corpus para o réu, mas sustentam a tese de que o perfilamento racial é ilegal. Juridicamente, isso é uma aberração”, declara.

A advogada explica que, para criar um precedente, é preciso um caso concreto que tenha sido julgado de determinada forma, para daí em diante todos os casos que guardem alguma correspondência com ele possam ser julgados da mesma forma. Ou seja, se o STF concorda que o perfilamento racial é ilegal, mas não aplica essa tese para o próprio processo que está sendo julgado, não é criado o precedente.

“Isso fragiliza a possibilidade de criar jurisprudência para que esse precedente funcione para outros casos. É muito grave e é reflexo da sofisticação do racismo”, completa.

“Estamos apostando nossas fichas no campo errado”

Se os demais ministros seguirem a tendência dos seus colegas, o processo deve finalizar negando o habeas corpus para o réu. No entanto, o IDPN alerta para uma questão técnica: o STF pode negar conhecimento ao HC, mas julgá-lo de ofício.

“Isso ocorre porque, na ponta, casos como estes não deveriam jamais chegar à Suprema Corte, pois sequer deveriam ter oferecimento de denúncia em razão da prova ser nula. Mas, chegam até o STF e, consequentemente, os tribunais criam mecanismos de jurisprudência defensiva”, explica.

Para o Instituto, existe uma saída no curto prazo: indicar pessoas negras para o STF, com consciência de raça, classe e gênero.

Já Gabriela acredita que “o Direito não dá conta de tudo”. Ela defende que o campo jurídico é o mais frágil para se promover mudanças radicais. “Se o Direito tivesse poder de promover as mudanças sociais que a gente espera, o racismo teria acabado no Brasil”.

Assim, apesar do país contar com um sistema de promoção da igualdade racial e combate ao racismo mais avançado que muitos outros países da diáspora, essa legislação não necessariamente é colocada em prática. Para a pesquisadora, a sociedade tem apostado em tratar no campo jurídico algo que demanda antes de mais nada um trato no âmbito social.

“Estamos apostando nossas fichas no campo errado. Porque suponhamos que esse precedente seja criado. Os policiais parariam de prender em decorrência da cor, ou apenas mudariam sua narrativa no registro dos boletins de ocorrência?”, questiona.

Branco é usuário, preto é traficante

Um levantamento realizado pela Agência Pública na cidade de São Paulo em 2017, mostra que os negros foram processados por tráfico com menos quantidade de drogas do que os brancos. Entre os réus brancos foram apreendidas, na mediana, 85 gramas de maconha, 27 gramas de cocaína e 10,1 gramas de crack. Quando o réu é negro, a medida é inferior nas três substâncias: 65 gramas de maconha, 22 gramas de cocaína e 9,5 gramas de crack.

Policiais militares em abordagem em Vitória (ES) (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Para o IDPN, o debate sobre perfilamento racial passa inevitavelmente pela guerra às drogas. Caso o precedente do perfilamento racial seja firmado, ele poderá ser utilizado para acusações de diferentes crimes, visto que sob pessoas negras é recorrente que recaiam suspeitas como furto, roubo, e até mesmo estupro.

Ainda assim, Gabriela afirma que julgamento está perdendo a oportunidade de destacar esse debate no âmbito do STF. “A prioridade é firmar a tese do perfilamento racial, mas uma coisa não pode estar dissociada da outra. Não existe guerra às drogas. A guerra é contra as pessoas. Contra determinado grupo de pessoas”, finaliza.

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