Ativista da Gamboa de Baixo, em Salvador (BA), conta sobre trajetória de luta em defesa do território

Ana Caminha conta a história das raízes da sua família na comunidade pesqueira até o início da sua luta por permanência no território a partir do surto do cólera em 1992 

Ana Caminha conta a história das raízes da sua família na comunidade pesqueira até o início da sua luta por permanência no território a partir do surto do cólera em 1992 

Por Andressa Franco

“Um peixe fora d’água morre rapidinho”, é como Ana Cristina Caminha se sente longe da Gamboa de Baixo, bairro litorâneo de Salvador (BA). Descendente de uma família pesqueira, o local é secularmente habitado por pescadores, e está localizado na entrada sudoeste da Baía de Todos os Santos, no centro da cidade. 

Ali, há 50 anos, Ana Caminha nasceu – em casa, e pelas mãos da avó –, se criou e vive até hoje. Quando conversamos, no entanto, ela não estava em casa. Mas por um bom motivo. A ativista estava no Fórum Nacional de Reforma Urbana, em São Paulo (SP).

Mas não foi da noite pro dia que Ana se tornou uma voz ativa em defesa da sua comunidade. Como muitas mulheres negras, a militância chegou diante da necessidade.

Imagem: Reprodução

Surto do cólera e projetos de urbanização levaram Ana para a militância 

Julho de 1992, Salvador. A Bahia registrou 123 casos de cólera. A Secretaria de Saúde do Estado investigou seis suspeitas de contaminação pelo vírus na Gamboa de Baixo, e três pessoas morreram com sintomas da doença na região. O surto criou um clima de tensão no bairro devido às irregularidades na infraestrutura de saneamento básico.

Neste período, as mulheres da Gamboa se mobilizaram na provocação ao Estado a fim de prover a assistência necessária. A perda de três moradores foi um dos catalizadores para a formalização da Associação Amigos de Gegê dos Moradores da Gamboa de Baixo. 

“Já tinha uma organização informal de mulheres fazendo luta na Gamboa. Mas com o surto do cólera, as mulheres se reúnem para tomar providências. A gente entende que é preciso uma coisa organizada e aproveitamos o período eleitoral para formalizar uma associação para buscar melhorias.”

Anos depois, em 2008, todo esse processo seria relatado por Ana, que é formada em pedagogia, no artigo “‘Daqui não saio, daqui ninguém me tira’: poder e política das mulheres negras da Gamboa de Baixo, Salvador”, escrito com a antropóloga feminista, ativista política e professora de Estudos Africanos na Universidade da Pensilvânia, Keisha-Khan Y. Perry, conhecida por escrever sobre movimentos sociais urbanos que lutam contra a violência do deslocamento forçado. 

“O que me leva à luta foi a explosão de problemas. A Gamboa era conhecida como um local perigoso, todo mundo tremia. Até para acessar a escola era difícil pela discriminação. Sem querer você se aproxima disso”, avalia Ana.

“Explosão de problemas”,  é como a ‘gamboeira’ se refere aos desafios que precisaram encarar na sequência. A Avenida Contorno é parte fundamental da história do bairro. Sua construção, em 1960, o separou de suas comunidades vizinhas. Alguns dos moradores resistiram à demolição de suas casas, mas perderam a luta contra a relocalização forçada. O que agravou o acesso à infraestrutura básica e provocou o isolamento do local. 

Décadas depois, em 1995, o Projeto de Revitalização da Avenida chega para assombrar os moradores. O projeto previa ainda a implantação do Parque de Escultura, e a expulsão das famílias das comunidades de Água Suja, do Solar do Unhão e da Gamboa de Baixo. 

“Expulsou 97 famílias. Nesse momento começaram a pichar as casas [marcar para demolição]. Não deixávamos pichar e organizamos a associação. Foi esse medo pós cólera e com esse projeto de revitalização que me fez cair de corpo e alma nessa luta.”

Para Ana, não tem como voltar atrás quando o risco é de perder não apenas a sua casa, mas sim a sua identidade. O que considera ainda mais grave, visto que sair da Gamboa sendo comunidade pesqueira, negra e quilombola é perder também a subsistência.

Família Caminha é uma das mais antigas da comunidade 

Para entender o pavor de Ana, para além dos óbvios absurdos da gentrificação sofrida pela comunidade, é preciso resgatar as raízes da ativista. Para ela é difícil diferenciar onde termina a Gamboa e começa Ana Caminha. A história do bairro se mistura com a história da líder comunitária, que tem mais facilidade para falar da região do que de si mesma. 

“Quando eu falo que sou nascida na Gamboa, é nascida de verdade. Sou de uma família de 11 filhos, onde 10 vieram ao mundo por mão de parteira, dentro de casa. Eu sou Gamboa de raiz, nascimento, sangue, amor.”

Ana conta que a família Caminha, da qual descende, é uma das duas mais antigas a ocupar o território, ao lado da família Bonfim. Sua avó é a matriarca que deu início à linhagem, sendo ela filha de indígenas. “Segundo contam, o Forte São Pedro era uma aldeia indígena. Os índios pescavam na nossa Gamboa. Minha avó descende dessa aldeia.”

Dos 11 filhos, 8 permanecem na Gamboa. Todos sobrevivendo da pesca. 

“Eu não tenho um irmão homem que não tem relação com a pesca. Até o que mora em Mussurunga é peixeiro, ele e meu outro irmão são os dois maiores peixeiros da área.” 

Violência policial agrava luta pela permanência  

Com uma relação fortalecida com os moradores, Ana mantém um bar na região, o Odoyá. É onde trabalha Dona Silvana dos Santos, de 42 anos, que vive no bairro desde os 14. Foi na Gamboa que teve seus oito filhos. Também foi onde um deles, Alexandre dos Santos, foi morto pela Polícia Militar da Bahia aos 20 anos, na madrugada de 1º de março de 2022. Assim como mais dois jovens: Cleverson Guimarães Cruz, de 22 anos; e Patrick Souza Sapucaia, de 16. O caso ficou conhecido como Chacina da Gamboa. 

Da gentrificação, passando pela especulação imobiliária até a violência policial, para Ana, são todos elementos de uma mesma luta, que não mudou no decorrer desses 30 anos: permanência. “O que garante nossa permanência na Gamboa é a identidade pesqueira. Quando somos atacados com ação da polícia, tentam caracterizar a Gamboa como uma comunidade de traficantes, perigosa, tentam desconstruir nossa identidade pesqueira.”

Imagem: Felipe Iruatã

Vale destacar que em 2016 as comunidades da Gamboa de Baixo e do Unhão foram reconhecidas como Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS tipo 5, aquelas ocupadas por comunidades tradicionais, em especial vinculadas à pesca. Nesse sentido, a visibilidade tem sido uma das facas de dois gumes na região, que se tornou destino turístico. Já foi locação de novela da Globo, série da Netflix e de clipe da Anitta. Processo que também preocupa Ana.

“Queremos melhorar a Gamboa, mas não queremos que os pescadores e pescadoras percam seu modo de vida. A liberdade de pegar nas pedras, de 4h da manhã está um gritando o outro pedindo passagem pra entrar no barco.”

Em setembro de 2022, outra obra foi anunciada pela prefeitura no território, surfando no capital turístico da região: a requalificação da orla da Gamboa.

“Esse projeto vem pra botar píer, mas pensando nas grandes lanchas, não no pierzinho para o pescador, não na acessibilidade para as mais velhas. O mais importante pra gente é não deixar de pisar nas pedras, porque é isso que nos faz ser gamboeiro.”

“A Gamboa é a cara da Bahia”

“A Gamboa é a cara da Bahia. Eu ouvi isso há mais de 20 anos numa reunião: ‘a cara da Bahia não é local pra esse povo ficar’. E é local pra quem? Pros brancos? Ricos? Não. A cara da Bahia, beira-mar é área pra pescadores, quilombolas, mulheres e homens pretos que fizeram a história daquele local”, declara a ativista com a repulsa de como se tivesse ouvido a frase pela primeira vez.

Para ela, essa disputa está clara na mente dos gamboeiros. Por mais que hajam momentos de suposta trégua, o fato de em pleno 2023 ainda não existir uma placa sinalizando a localização enquanto “Gamboa de Baixo”, é um sinal de que a luta por permanência está bem viva.  

“Pra você chegar na Gamboa, eu tenho que dar um monte de referência, e talvez ainda tenha que ir lá em cima te buscar. Isso é normal ou proposital? Nossa permanência não está garantida. Quando pararem de pensar em nos retirar, a cara da Gamboa muda.”

A líder comunitária explica que o bairro sofre com o tráfico de drogas, da mesma forma que em todos os bairros. No entanto, se trata de uma comunidade “tão pequena”, que a violência das ações policiais não se explica. O quadro, defende, poderia ser revertido com investimento, abertura de emprego e renda, entre outras medidas. 

Protagonismo e liderança das mulheres

Da informalidade até a formalização de uma associação de moradores composta por 11 mulheres e apenas um homem, as mulheres negras sempre foram a ponta de lança da luta por direitos na Gamboa de Baixo. O dado é motivo de orgulho para Ana Caminha.

“São mulheres que conseguiram enfrentar primeiramente seus maridos para sair de casa. E pescador é homem brabo. O homem chega do mar e a mulher tá na rua, em reunião, resolvendo o problema da comunidade. Isso é bem difícil”. Para a ativista, o movimento de organização da comunidade empoderou as mulheres. “Tem mulheres na Gamboa universitária, diretoras. Não existia essa perspectiva antigamente.”

Incluir as discussões sobre raça e racismo nesses espaços, também foi um elemento de fortalecimento da luta das mulheres da Gamboa. “A mulher preta sempre teve dupla, tripla jornada. E não é porque a gente quer, é porque a gente é obrigada. A mulher dá a vida para transformar a realidade da sua humanidade, da sua família.”

O que falta, afirma, é que estas lideranças que fazem a diferença com tão pouco em suas comunidades, acessem recursos e ocupem postos de poder. 

Em meio a tantas lutas, no fim do dia, o autocuidado é uma coisa que acaba fugindo um pouco da realidade. Mas para Ana, cuja identidade não se separa da Gamboa, cuidar do território é cuidar de si mesma. Mas nada a satisfaz mais do que contribuir para a transformação da realidade de outras mulheres pretas.

“Ana fora da Gamboa, é Ana sem sentido. A Gamboa só continuará viva se continuar como Gamboa da pesca. Se você chegar aqui e só ver lanchas, comércio de bebida e comida, se você não ver pescadores e pescadoras, você não vai estar mais falando de uma comunidade tradicional de pescadores, que é a Gamboa de baixo”, finaliza.

*Este texto faz parte da série Akofena: Mulheres Negras e Indígenas em Defesa de Seus Territórios

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *