Uma jornada inteira de resistência e mais de uma década de ativismo pelos territórios indígenas e direitos humanos das mulheres e das meninas
Por Karla Souza
No sertão de Pernambuco, entre os municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá, quase às margens do Rio São Francisco, surge a voz forte e resiliente de Elisa Urbano Ramos, uma mulher indígena do povo Pankararu. A ativista tem mais de uma década de engajamento em movimentos ligados ao campesinato, às causas indígenas, além dos direitos das mulheres e meninas.
Elisa é mestra e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGA-UFPE). Atualmente, é Coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas na Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME).
Com sua luta consolidada, a indígena é guardiã das tradições, uma defensora dedicada de seu território e uma educadora comprometida com as razões em que acredita. “Levar a minha voz em defesa dessas causas é um desafio em um universo racista. Mas minha alegria é levar a minha voz, e que a voz não seja apenas de Elisa, mas de todos os meus e as minhas.”
A gênese
Sua história começa em uma infância que ecoa os ritmos naturais da terra. A indígena do povo Pankararu viveu uma juventude em que a eletricidade só se tornou presente depois de algum tempo. Somente aos 15 anos, passou a ter acesso a essa forma de energia. Durante esse tempo, experimentou a pureza da vida na aldeia, ao lado de seus pais e avós, imersa em tradições ancestrais, longe das interferências tecnológicas e da poluição moderna, tanto sonora quanto visual e ambiental.
“Convivi com parteiras, rezadeiras, curandeiras, puxadoras de rituais, caciques, pajés”, lembra, descrevendo uma realidade que hoje caracteriza como uma forma de “tecnologia alternativa”, exclusiva do seu povo.
Estudando na aldeia durante os 10 primeiros anos de sua vida, até a anteriormente chamada de 4ª série, ela conta que foi para a cidade concluir o Ensino Fundamental II e também o segundo grau, atual Ensino Médio. Hoje, Elisa é uma professora que participa da questão do seu povo na luta pela educação indígena, específica, diferenciada e intercultural. Essa mudança também abriu seus olhos para as disparidades entre as mulheres.
O “feminismo indígena”
A presença marcante de mulheres em diferentes estágios da sociedade foi um ponto de reflexão para Elisa desde quando era criança. Ela questionava como essas mulheres se representavam ou estavam no mundo, as razões por trás das diferentes realidades que as mulheres enfrentavam, desde aquelas empoderadas até aquelas subordinadas, muitas vezes vítimas de violência doméstica. Essa consciência a impulsionou em direção à academia, focando suas pesquisas na compreensão das experiências das mulheres, especialmente as indígenas.
“Então são duas categorias extremas e que me chamam muita atenção. A primeira, por serem mulheres que têm uma voz tão forte e ouvida quanto a dos homens. E a segunda, que é a de subalternização. Como e por que as mulheres eram tratadas com diferença, injustiça e violência?”, questionava. Esse exato contexto fez com que ela tivesse a necessidade de se aproximar dos movimentos sociais de gênero e chegasse na defesa do conceito de “feminismo indígena”.
De acordo com a professora, essas mulheres subordinadas são as mesmas que vão às feiras vender artesanato e insumos, que garantem a subsistência da família, sendo chefes delas, quando não são mulheres sozinhas. Outras mulheres estão em um estágio diferente de subalternização, as que sofrem violência doméstica.
Quando era criança, Elisa já ouvia falar de violência doméstica e palavras preconceituosas. “Na minha inocência, eu não sabia por que diziam que as mulheres eram sujas. Eu entendia que sujo era quem não tomava banho. Passei a questionar por que usavam certas palavras, porque as atitudes de exclusão, de minimizar, de diminuição, de desvalorização.”
Tais balizas a levaram a reflexões e articulações de pensamentos, onde efetuou a defesa na sua militância e ativismo em prol das mulheres, não apenas indígenas, mas de todas que passam por violência. O ativismo dela floresceu a partir de suas raízes, do contato com as lideranças femininas em sua comunidade e da participação em organizações como a APOINME, onde encontrou inspiração nas grandes líderes femininas de diferentes estados do Brasil.
Elisa destaca a importância de ocupar espaços, recontar a história sob a ótica dos povos indígenas e lutar contra o racismo. “O Nordeste tem grandes lideranças mulheres e a parte do meu povo, que eu considero de sociedade matriarcal também, onde grandes nomes marcam a sua história.”
Ancestralidade, defesa o território e justiça social
A defesa do território é uma missão central para Elisa, uma luta que ela vê como a mãe de todas as outras. “Eu sou a descendência da ancestralidade.”
Para a ativista, o racismo é uma mazela que permeia a vivência dos povos indígenas como um todo. “O entroncamento patriarcal que sequestra os nossos homens para trabalhar. E essa mazela do preconceito, da dissimulação do racismo, ela não atingiu, não violou e violentou apenas nossas mulheres e meninas, mas os nossos homens também.”
Elisa enfatiza que a história do país foi feita sob a ótica dos colonizadores, por isso acredita que é necessário, enquanto povos originários brasileiros, ocupar esse lugar e contar a própria história. “A nossa fala é negada por esses racistas! Essa invisibilização, não existência, ausência de nossas falas e negação da presença gera violência, ela é a violência. Então precisamos ocupar cada espaço.”
Elisa Pankararu personifica a resiliência, a sabedoria e a determinação de um povo que, mesmo diante de desafios históricos e contemporâneos, continua a lutar pela preservação de suas tradições, pela igualdade de gênero e pela justiça social.
*Este texto faz parte da série Akofena: Mulheres Negras e Indígenas em Defesa de Seus Territórios