Carta ao governador denuncia racismo obstétrico e exige medidas contra a mortalidade materna de mulheres negras na Bahia

Documento assinado por entidades do movimento negro e conselhos profissionais cobra respostas sobre mortes recentes e aponta omissões do Estado

Por Karla Souza

Uma carta aberta enviada neste mês de maio ao governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, reúne dados, denúncias e cobranças por providências concretas para enfrentar a mortalidade materna de mulheres negras e o racismo obstétrico no estado. A carta solicita informações detalhadas, responsabilização de profissionais envolvidos em mortes recentes e ações estruturantes que garantam o direito à vida e à saúde reprodutiva das mulheres negras baianas. Segundo o Conselho Regional de Serviço Social da 5ª Região (CRESS-BA), o documento foi encaminhado no início do mês por e-mail e também via correio, com aviso de recebimento.

Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 2023, embora a Bahia tenha uma população majoritariamente negra (79,5%) e feminina (51,7%), os indicadores de saúde para esses grupos seguem em situação crítica. Em 2018, a Secretaria Estadual de Saúde (SESAB) registrou que 85% das mortes maternas ocorreram entre mulheres negras. No Brasil, a razão de mortalidade materna entre mulheres negras chegou a 100,38 por 100 mil nascidos vivos em 2022, mais que o dobro da taxa entre mulheres brancas, de 46,56, segundo a pesquisa Nascer II/Fiocruz.

A carta faz referência a dois casos recentes ocorridos na Maternidade Albert Sabin, em 2024. Ambos os episódios foram divulgados na imprensa, mas não houve retorno público sobre as medidas tomadas. Em resposta a um ofício do Movimento Negro Unificado da Bahia (MNU-BA), a SESAB prestou informações consideradas insuficientes.

Os movimentos sociais demandam o afastamento dos profissionais envolvidos durante o processo de investigação, a apresentação de relatórios das capacitações realizadas entre 2022 e 2024 e a comprovação de ações voltadas à prevenção da mortalidade materna com foco racial. Uma das médicas apontadas nos casos segue atuando em outra unidade estadual, mesmo já tendo sido alvo de denúncias anteriores.

Além das medidas emergenciais, a carta reivindica transparência em dados e investimentos públicos. São solicitadas informações sobre o acesso ao pré-natal com recorte racial e territorial, fluxo de referência entre maternidades e atenção básica, denúncias de violência obstétrica e estrutura das ouvidorias estaduais. Também são cobradas ações específicas como o monitoramento da implementação do quesito raça/cor nos registros de saúde, conforme determina a Portaria MS nº 344/2017.

Racismo obstétrico

A carta contextualiza os pedidos com o marco legal da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (2009) e da Política Estadual de Atenção à Saúde da População Negra (2013). Relembra também a condenação internacional do Brasil em 2011, pelo caso de Alyne Pimentel, mulher negra que morreu após negligência obstétrica. A partir desse caso, o Ministério da Saúde criou a Rede Alyne Pimentel, com a meta de reduzir pela metade a mortalidade materna de mulheres negras até 2027.

Conforme pesquisas da estadunidense Dána-Ain Davis, a definição de racismo obstétrico engloba sete dimensões, entre elas negligência, coerção, humilhação pública e dor intencional. O racismo obstétrico, segundo os signatários, compromete o direito à maternidade segura e expõe a permanência de práticas violentas nas unidades de saúde.

“As denúncias feitas por mulheres negras são frequentemente deslegitimadas. Observamos que há uma naturalização da nossa dor e do nosso sofrimento, baseada no racismo institucional, além de uma tendência de proteger os profissionais envolvidos”, afirma Luana Souza, pesquisadora e técnica do Nós por Nós – Observatório de Justiça Reprodutiva do Nordeste.

O Observatório atua monitorando, documentando e denunciando violações aos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres negras periféricas e quilombolas do Nordeste. Entre os principais entraves à responsabilização, estão o arquivamento precoce das denúncias e a ausência de um reconhecimento jurídico específico da violência obstétrica, além da falta de acolhimento nas ouvidorias e conselhos regionais. Para Luana, é urgente garantir escuta qualificada e responsabilização institucional.

“Todas as providências exigidas na carta são urgentes para que possamos garantir as medidas dos casos denunciados, bem como as mudanças estruturantes. Consideramos importante a escuta das mulheres negras e a responsabilização institucional com abertura de processos administrativos e investigação imediata dos casos denunciados”, declara a pesquisadora. 

Além disso, Luana defende a criação de um protocolo estadual de enfrentamento ao racismo obstétrico, construído com a participação dos movimentos de mulheres negras, e reforça a urgência da formação obrigatória e continuada para todos os profissionais de saúde sobre as especificidades da mortalidade materna de mulheres negras e o racismo obstétrico.

Ela também destaca a importância de instalar canais de denúncia acessíveis, com retorno garantido às vítimas, e de garantir a transparência nos dados de mortalidade materna e violência obstétrica com recorte por raça/cor.

Solicitações e signatários 

A carta é composta por uma lista de 16 solicitações, entre elas a existência de um plano estadual de enfrentamento à mortalidade materna, o status da implementação de programas como Parto Humanizado e Mãe Canguru, e o detalhamento dos investimentos estaduais, incluindo o cofinanciamento aos municípios. “Cerca de 92% dos casos de morte materna são evitáveis, sendo causados principalmente por hipertensão, hemorragias, infecções e abortos provocados (Levantamento da Universidade de Campinas)”, relata trecho do apontamento.

O documento é assinado por organizações do movimento negro, feminista e de conselhos profissionais da Bahia. Entre as entidades estão: Bloco Afro Os Negões, Conselho Regional de Psicologia da 3ª Região – Bahia (CRP-03), Conselho Regional de Serviço Social da 5ª Região – Bahia (CRESS-BA), Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN), Fórum de Entidades Negras da Bahia, Instituto da Mulher Negra Odara, Movimento de Mulheres Negras Dandara do Sisal, Movimento Negro Unificado da Bahia, Rede de Mulheres Negras da Bahia e União de Negros e Negras pela Igualdade (UNEGRO).

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