Por Laila Batista* / Imagem: Trevoy Kelly
Quero pedir licença pra entrar, para falar com minhas irmãs, esse não é um texto teórico, é uma carta de amor, porque tem sido doloroso acompanhar as nossas desavenças abertas a um público que vibra com a nossa carne exposta, que vibra com os nossos desafetos e a nossa desunião. Toda vez que vejo mais uma “treta” como chamam, envolvendo uma das nossas, uma tristeza profunda me invade, fecho os olhos e consigo visualizar brancos e brancas sentadas em frente ao computador, gargalhando da nossa dor.
A branquitude consegue estabelecer de forma muito sólida um pacto entre eles, é o que Cida Bento vai chamar de “Pacto Narcísico da Branquitude”, de forma que por mais que hajam divergências, essas sempre serão resolvidas dentro dos seus ciclos, e não publicamente, afinal, eles aprenderam com os seus antepassados, aqueles que iniciaram toda uma era de exploração e violência, que a união é bom e garante o poder. Eles também aprenderam que a dispersão de um povo, gera seu enfraquecimento, sendo então mais fácil de ser dominado.
Esse pacto garante privilégios que se estenderam para todo o segmento branco, independente da classe social. É o que Lélia Gonzales vai chamar de privilégio racial, ou seja, o grupo branco é o beneficiário da exploração da população negra, inclusive “aqueles sem propriedades dos meios de produção que recebem seus dividendos do racismo” (GONZALES, 2018, p. 78)
Sendo assim, as nossas desavenças, que são diferentes de divergências de ideias, geram força para aqueles/as que nos querem dispersas e enfraquecidas. Olhar para a memória e trajetória das nossas mais velhas nos dá uma perspectiva de como podemos caminhar para não cairmos nas armadilhas da branquitude. Nossas senhoras, que já traziam a sabedoria registrada nas mãos calejadas, enquanto penteavam nossos cabelos, que “roupa suja se lava em casa” ou “o que eu não quero pra mim eu não quero pro outro”. Pode parecer bobagem e senso comum para alguns ouvidos, mas isso é sobre autopreservação, cuidado e afeto. Outro dia ouvi Carla Akotirene falar que afeto é olhar para si e ver todas as outras, e como Oxum, nossa ancestral, ayabá do amor e do cuidado, através do seu abebé cuida de todas nós, mulheres pretas, essas palavras me encheram de afeto e esperança, de que outros caminhos são e serão possíveis para nós.
Nós somos pessoas negras em diáspora vivendo uma multiplicidade de experiências e por isso, as mais diversas perspectivas. Somos diversos e com vivências distintas, isso é o que constrói a nossa identidade, trajetória e memória. Não precisamos caber em caixinhas e nem ter referenciais para todos os assuntos raciais. Respeitemos o tempo de nossas irmãs, reverenciemos as que vieram antes e acolhamos as que estão por vir.
Aprendemos com a sabedoria das nossas Iyas nos terreiros a importância de ouvir, e que o tempo é fundamental, é ele quem orienta o momento de cada processo. Se a palavra tem o poder de construir ou de destruir, porque nós pessoas negras, devemos optar por usá-las contra os nossos pares? Existe um provérbio africano que diz “o eco da primeira palavra fica sempre no coração”, a pergunta que faço é, qual o eco que queremos legar para nossas irmãs? A política de cancelamento que tem tomado as redes sociais há alguns anos não é legado nosso, nosso povo tem raiz na resistência, cuidados e fortalecimento dos nossos e das nossas, e não no escárnio entre nós.
Os cancelamentos virtuais tem alimentado o auto-ódio entre o nosso povo, nossas diferenças epistemológicas não podem ser justificativa para reagirmos com violência simbólica, verbal ou psicológica. Questionamos até os papéis sociais que outras negras e negros ocupam no processo de ascenção social, essa não é uma estratégia de fortalecimento, e sim, uma armadilha da lógica racista que nos ensina que só um de nós pode viver bem, nos ensina que precisamos competir entre nós e assim, nos impede de nos ver na outra/o.
Essa mesma política racista, tem sido o motor para práticas de linchamentos virtuais, ou os chamados haters, tomados por raiva, inundam as redes sociais para desqualificar pessoas negras com perspectivas políticas diferentes das suas. Audre Lorde nos ensina a importância do uso da raiva como combustível para as nossas ações políticas, para o enfrentamento ao conjunto de violências racistas que sofremos ao longo da vida, nos ensina que por mais que doa precisamos lidar com ela, conhecê-la, mas não podemos deixar que ela nos destrua.
Os cancelamentos e linchamentos tem origem no projeto racista, colonizador e de extermínio do povo negro, toda a lógica de punição, com base na humilhação e formas de provocar dor e culpa trazem elementos históricos da branquitude com raízes escravocratas. Por exemplo, quantas leis foram criadas com a perspectiva de negar o acesso ao conhecimento e punir o negro/negra por estar no espaço público sem documentos, tendo como punição a violência física e humilhações. Ou o sistema de encarceramento em massa? De toda essa lógica, queriam extrair da população negra o sentimento de “culpa”, sabemos que a culpa tem origem em religiões cristãs, ou seja, mais uma das armadilhas de um sistema racista que sabe exatamente onde nos querem, e como nos querem, e com certeza é nos manter em papéis de subalternidade.
Por fim, aqui não espero trazer verdades, apenas reflexões para que pensemos sobre as nossas estratégias de resistência, que como dizia Audre “ as ferramentas do senhor nunca derrubarão os da casa-grande”, então, que miremos nas nossas mais velhas que nos deixaram tanto com herança, princípios da nossa tradição como o respeito, a solidariedade e o zelo entre nós. Como o cuidado entre elas permitiram bem-viver, vida longa e possibilidades.
“Ninguém é tão sábio que não tenha necessidade de ser um eterno aprendiz”, mãe Stella de Oxossi
*Mulher negra em movimento na luta anti-racista, de enfrentamento as diversas formas de preconceito (Lgbtfobia, machismo, xenofobia e outras), filha do Ilé Asé Opo Osogunladê, mãe de Enzo e Bento, jornalista e mestre em Comunicação (UFS). Atualmente Gerente da Igualdade Racial da Prefeitura de Aracaju e integrante da Auto-organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria e do Movimento Negro Unificado(MNU/SE)