Por Karla Souza
Artista do corpo e das imagens, budista, soteropolitana, mãe, com raízes no recôncavo baiano e na costa do cacau, Felícia de Castro ocupará no mês de agosto seis escolas públicas de Salvador e da região metropolitana através do projeto “Tudo que Você Precisa é Amor”. Criado pela própria Felícia, o programa inclui exibições do filme “Tudo Que Você Precisa é Amor” e rodas de conversa mediadas pela idealizadora e por Bruna Hercog, com tradução na Língua Brasileira de Sinais. Além disso, no projeto serão oferecidas oficinas “Palhaçaria feminista – Riso como Enfrentamento” para estudantes do ensino médio.
“Tudo Que Você Precisa é Amor” é o filme que surgiu de um espetáculo cênico criado por Castro em 2018, uma obra tragicômica que aborda temas profundos como violência e amor. Com a intenção de promover reflexões e mudanças de paradigmas, o projeto busca utilizar a arte e a educação como ferramentas de transformação. A proposta foi contemplada nos Editais da Paulo Gustavo Bahia e conta com apoio financeiro do Governo do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura via Lei Paulo Gustavo, direcionada pelo Ministério da Cultura, do Governo Federal.
Doutoranda em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Felícia de Castro atua, dirige, escreve e orienta artistas em processos criativos que relacionam arte, tecnologias ancestrais, ativismo feminista e antirracista, comicidade e performance. A palhaça conversou com a Afirmativa sobre sua trajetória enquanto mulher negra e sobre o projeto.
Revista Afirmativa: O que te inspirou a criar o projeto “Tudo que Você Precisa é Amor”?
Felícia Castro: A obra mexe fundo com as pessoas e tem uma organização do amor, como via de luta. Agora está sendo levado pela primeira vez para o público adolescente. Desejo que o impacto que este filme gera nas nossas dimensões sensíveis desperte nos adolescentes a abertura e amorosidade para ampliar as reflexões sobre o tema da violência e sexualidade, de forma a acolher a si mesmo e aos outros de forma mais compreensiva, cuidadosa e compassiva, levando em consideração a visão de nossa frágil situação humanitária.
R.A.: Quais são os principais objetivos que você espera alcançar com este projeto nas escolas?
F.C.: Espero criar um ambiente de troca amorosa que promova acolhimento, aberturas e transformações. É com muita alegria que estamos unindo arte com educação e política, reunindo uma equipe de profissionais diversos e incríveis. Queremos promover reflexões e mudanças de paradigmas acerca da violência contra a mulher e abuso infantil, inspirando a descolonização do corpo por meio da prática libertadora da palhaçaria feminista e do riso.
R.A.: Poderia nos falar mais sobre as rodas de conversa e as oficinas de riso como enfrentamento? Qual é a importância dessas atividades complementares?
F.C.: Na oficina vamos vivenciar a linguagem e as questões e emoções que emergem do filme, mas com o corpo, com a dança, com a voz, com o canto, com a brincadeira. Acolhendo a diversidade de mulheres e feminismos, assim como pessoas não binárias, a oficina “Palhaçaria Feminista – Riso como Enfrentamento” convida para acessar, através de experimentação cênica, do diálogo e de práticas e tecnologias ancestrais, o riso que cura e liberta. Cada encontro com mulheres é uma revelação de mundos incríveis que estavam soterrados. Todas nós, infelizmente e inevitavelmente, trazemos as feridas e as marcas da violência, da opressão e da domesticação sexual. Nosso corpo foi o primeiro território a ser colonizado e este é o ponto de partida.
R.A.: O projeto aborda temas delicados como abuso infantil, violência contra mulheres e racismo. Como você equilibra a comicidade com essas questões sérias?
F.C.: A palhaçaria é a linguagem guia deste filme. O riso afrouxa e abre o coração para receber choques de realidade e informações dolorosas. Dessa forma, indo além da compreensão intelectual, mas passando pelo nosso sentir, a percepção da situação de violência e fracasso humanitário a que chegamos, pode fazer efeito em um nível mais profundo, ampliar a reflexão e transformar de forma mais efetiva.
R.A.: Qual é a relevância da mitologia arquetípica de deusas de culturas matriarcais na sua obra e de que forma é apresentada?
F.C.: Desde 2009 trabalho com a mitologia arquetípica de deusas de antigas culturas matriarcais. Em especial com a mitologia da Baubo, deusa do riso que salva a mãe terra Deméter da tristeza e depressão, por causa do sequestro da filha Perséfone, fazendo-a rir e reagir para encontrar a filha, roubada por Hades, deus dos infernos e do submundo. Viver coisas no corpo através da ativação da mitologia nos leva a uma compreensão muito mais eficiente do poder restaurador e transformador do riso, e esta é a magia do trabalho, é uma articulação de tecnologias diversas, incluindo práticas culturais, danças e cantos afro-brasileiros e dinâmicas de acessar memórias e corporeidades ancestrais.
R.A.: Como você vê a importância da arte e da comicidade no enfrentamento e na superação de traumas e situações difíceis?
F.C.: O trauma é uma desconexão com nosso eu genuíno. O riso, o prazer e a alegria nos reconectam com nossa essência. Vivenciar o poder do riso coletivamente, que é o acontece, por exemplo, assistindo ao filme “Tudo que Você Precisa é Amor”, tem um efeito de reconexão e cura imensurável, percebo e observo a partir dos depoimentos que recebo. Enquanto obra artística, promove um efeito muito direto, e acessa lugares nossos que às vezes uma terapia não vai. A arte tem esse poder por entrar em contato com nossa criatividade inerente que garante nossa dimensão saudável.
R.A.: Falando agora sobre a sua construção profissional, como foi a sua trajetória até se tornar uma palhaça negra?
F.C.: Ser negra neste mundo já não é fácil. E ainda mais sendo palhaça então… A arte foi minha reação ao racismo e opressão. Desde criança eu dizia que seria atriz, e encontrar a palhaçaria foi também uma via de trazer a sinceridade, transparência, e visceralidade que eu buscava na atuação. Tive um longo tempo de formação, e a consciência de ser “palhaça negra”, junto a memórias como estas, vieram coletivamente uns anos depois num processo de afirmação coletiva, percebo. Quando eu comecei, em 1999, no Brasil, quase não havia referências nem de palhaças mulheres, muito menos de palhaças negras.
R.A.: Você poderia compartilhar algum momento ou performance em que sentiu que a sua presença e trabalho como palhaça negra fizeram uma diferença significativa?
F.C.: Já passei por diversas situações, mas talvez as mais marcantes estejam no início de minha trajetória, nos olhinhos das crianças negras, do subúrbio soteropolitano. Olhinhos que brilhavam com um amor que me desarma até hoje, só de lembrar. Estavam tão felizes de estar ali. Tinha um reconhecimento e uma paixão por aquela figura de cabelo black power exercitando e celebrando sua liberdade de ser e estar no mundo.
R.A.: De que forma o seu ativismo feminista e antirracista se manifesta nas suas obras e performances?
F.C.: Na criação, acontece combinando dispositivos e estratégias diversas. Reflito que há uma união destas dimensões (feminista e antirracista), que se manifesta articulando as temáticas e pautas à forma crua e intensa de me expor em cena, de me fazer presente como mulher negra. Esta presença agenciada enquanto corpo, voz, palavra, canto, imagem, leva a uma conexão muito forte com as pessoas, recursos que a palhaçaria, entre outros treinamentos, me trouxe. A palhaçaria feminista subverte a ordem estabelecida, usando humor para abalar estruturas opressoras, expõe e desafia a desigualdade racial, de gênero e social.