Covid-19 e o acesso à Internet como um direito fundamental

Quando prestarem contas sobre as estratégias tomadas para conter a pandemia do Covid-19, diversos governos também terão que lidar com os resultados de seus planos (ou da ausência deles) que visavam responder à crise sanitária, mas que acabaram atenuando a vulnerabilidade de muitos povos.

Por Marry Ferreira

Quando prestarem contas sobre as estratégias tomadas para conter a pandemia do Covid-19, diversos governos também terão que lidar com os resultados de seus planos (ou da ausência deles) que visavam responder à crise sanitária, mas que acabaram atenuando a vulnerabilidade de muitos povos. Em março de 2020, em um briefing diário sobre COVID-19, Dr. Michael Ryan, Diretor Executivo da Organização Mundial da Saúde, disse que “esta é provavelmente a primeira pandemia do século 21 em que todo o poder da tecnologia da informação, mídia social e inteligência artificial está sendo aplicado a quase todos os aspectos desta resposta”. No entanto, qualquer indivíduo minimamente envolvido com debates sobre o acesso a internet, sabe que, da forma como foi construído, o sistema atual simplesmente não só não contempla as pessoas que mais precisam das políticas públicas, como também aumenta as desigualdades de acesso, distribuição e recebimento de informações.

Para pessoas negras nos Estados Unidos, o impacto contínuo da exclusão digital tornou-se fortemente desenhado desde o começo da pandemia, à medida que as escolas mudaram para o ensino online. Em uma pesquisa sobre uso de internet, a Pew Research publicou que bibliotecas públicas, que ficaram fechadas por meses, desempenhavam um papel importante no acesso a internet, já que 42% dos usuários negros das bibliotecas dizem que usam os computadores das bibliotecas para se conectar. Pais e mães com filhes em casa envolvidos no aprendizado à distância também tiveram dispositivos e internet limitados para compartilhar entre a família. Na internet, circularam imagens de crianças forçadas a sentar-se em estacionamentos de restaurantes para ter acesso Wi-Fi gratuito para que pudessem assistir às aulas online, que mostram como a divisão digital ainda é grande no país.

No Brasil, a situação não foi muito diferente. Um exemplo é o saque do Auxílio Emergencial em 2020, que exigia o acesso a um celular com conexão à internet para fazer a solicitação pelo aplicativo da Caixa Econômica. Faria sentido, não fosse o fato de que 20% dos domicílios do país – o equivalente a 17 milhões de unidades residenciais – não estão conectados à internet e 3,8 milhões de pessoas não têm celular, segundo o IBGE. O mesmo motivo que gera desigualdades e desafios de aprendizagem nas escolas, e que levou movimentos sociais a pedirem o adiamento do ENEM durante o período de pandemia. O resultado nós vimos: multidões em frente aos bancos de pessoas tentando garantir o sustento de suas famílias. As mesmas multidões que lotam as filas dos bancos para receber o auxílio também são as que mais morrem devido à pandemia no Brasil. A esta altura já está claro que, seja no Brasil ou nos Estados Unidos, as pessoas mais expostas e que mais sofrem com a pandemia do Covid-19 não são as primeiras a se beneficiarem das soluções e estratégias propostas para conter a pandemia.

No último mês, escrevi para a Revista Afirmativa sobre as disparidades no acesso à vacinação nos EUA onde, mesmo em estados onde a população negra é maior, inclusive entre trabalhadores de saúde que são os mais expostos ao vírus, pessoas brancas seguem sendo vacinadas em números mais altos. Os motivos para essa disparidade são diversos, e uma delas tem se destacado: o acesso à tecnologia tem desempenhado uma exacerbação das disparidades de vacinação. Em cidades populosas como Nova York, obter a vacina na maioria dos lugares é como conseguir ingressos para o show de uma banda de pop famosa. Na maioria dos estados do país, o agendamento da vacinação se faz através de sistemas online, e a estrutura digital criada exige infinitos processos de atualizar a página, clicar e verificar sites ao longo do dia, favorecendo quem tem recursos para obtê-la.

Nas redes sociais ou em principais veículos de mídia, idosos e trabalhadores essenciais criticam como a distribuição da vacina veio com um labirinto de páginas de cadastro, exigindo que os cidadãos tenham tempo para encontrar locais com disponibilidade e conhecimento tecnológico. Além de acesso a internet é um dispositivo para navegação, era preciso navegar nos alertas de texto, notificações e lembretes por e-mail.

Mesmo aqueles que conseguem acessar o agendamento de vacinas online, muitos encontram vagas reservadas em minutos , formulários complicados e tecnologia antiquada que leva a falhas no site. Alguns idosos que puderam se registrar posteriormente encontraram problemas quando solicitados a fornecer códigos de confirmação QR. De acordo com a Older Adults Technology Services, Inc., 22 milhões de idosos americanos estão enfrentando a quarentena sem uma conexão com a Internet. Vale ressaltar que essa estatística não leva em conta as inúmeras outras pessoas que têm internet não confiável ou irregular, visto que 1 em cada 4 pessoas nas áreas rurais fica sem internet regularmente.

Se os dados são chocantes, as histórias de pessoas que não conseguem acessar as consultas seguem o mesmo caminho. No Texas, comunidades como os Swindales, onde uma parte dos habitantes não possui fluência em inglês, precisaram que um pastor local entrasse em contato e ajudasse os idosos a navegar no sistema para se registrar para uma vacina. Em uma entrevista ao NY Post, uma mulher de 83 anos com linfoma disse que tentar obter uma vacina era como “bater em uma parede de tijolos”, enquanto outra de 78 anos contou ao The Hill que passou tanto tempo tentando descobrir como navegar no portal de registro online que, quando finalmente conseguiu, todas as consultas haviam acabado. Uma idosa residente do Queens ficou tão estressada ao tentar e não conseguir uma consulta que contou a um repórter, “Tudo o que fiz foi chorar”. Ela continuou: “Quando você for mais velha, isso pode lhe causar um ataque cardíaco, porque o medo e o uso contínuo do computador apenas geram negatividade”.

Mesmo entre pessoas que têm smartphones, computadores e acesso à Internet, as disparidades continuam. Muitos indivíduos de baixa renda, incluindo trabalhadores essenciais, não têm tempo e horários flexíveis necessários para verificar ou acessar a Internet a qualquer momento. Muitos dos quais, trabalhadores em restaurantes, com cozinhas apertadas e em maior risco de adoecer devido à maior exposição ao vírus.

À medida que a distribuição da vacina se acelera e todas as pessoas se tornam elegíveis para marcar uma consulta, é provável que persistam as desigualdades no registro online caso o sistema de agendamento se mantenha. De acordo com o Pew Research Center, entre os adultos estadunidenses com renda anual de $30.000 ou menos, três em cada dez não possuem um smartphone, e mais de quatro em cada dez não tinham serviços domésticos de banda larga (44%) ou um computador tradicional (46%).  E os dados são mais discrepantes para pessoas negras, onde apenas 58% relatam possuir um computador desktop ou laptop, e cerca de 23% acessam a internet somente pelo celular.

Nos Estados Unidos, o fato é que esse tipo de modelo de distribuição de vacinas que não vai até as pessoas em suas comunidades e investe recursos para atendê-las em seus próprios termos, só abre espaços para mais desigualdades. Um exemplo disso aconteceu em um local de vacinação instalado em Washington Heights, em Nova York, para atender uma comunidade latina duramente atingida. Em vez de a comunidade latina conseguir as consultas, as vacinas foram para um grande número de pessoas brancas que vieram de áreas vizinhas. Em outros casos, pessoas que não eram elegíveis para a vacina, com a instrutora de ciclismo Stacey Griffith obtiveram a vacina dizendo que era uma educadora com a ajuda de pessoas para “preencher formulários online” e “enviar a papelada” para obter a vacina.

Alarmadas, muitas cidades e cidadãos estão tentando retificar as desigualdades. Os principais veículos de notícias criaram guias para ajudar os leitores a navegar pelos processos de registro. Delaware tem hospedado eventos regulares de vacinação em massa, o Black Doctors COVID-19 Consortium na Filadélfia recentemente ofereceu uma clínica 24 horas com vagas para ambulantes que recebeu uma participação massiva, o Departamento de Saúde de Vermont agendou quase 12.000 de suas 26.500 consultas para residentes com 75 anos ou mais por meio de um sistema de ligação telefônica estadual. Baltimore oferecerá a chance em conjuntos habitacionais para idosos, indo de porta em porta; em Connecticut, as autoridades de saúde estaduais recorreram ao United Way of Connecticut, para estabelecer uma linha gratuita de assistência para marcação de vacinas para aqueles que não têm acesso à tecnologia ou não são fluentes em seu uso.

As redes sociais também tem sido outra forma de os profissionais de saúde disseminarem rapidamente informações sobre recursos locais, aberturas de vacinas de última hora. Grupos do Facebook como PA CoVID Vaccine Match Maker, New York / Connecticut Vaccine Hunters and Angels e New Jersey Covid Vaccine Info, que somam mais de 200 mil membros, compartilham diariamente links de inscrição e informações sobre vacinas, assim como pessoas que atuam como voluntários de agendamento de vacinas para ajudar as pessoas a navegar na implementação. No entanto, esse método de inscrição funciona apenas para indivíduos que podem realmente acessar a internet e possuem recursos tecnológicos.

Recentemente, á medida que as campanhas de vacinação contra COVID-19 avançam, governos trabalham em medidas para liberar acesso a certos locais apenas para quem já se imunizou. O estado de Nova York, por exemplo, lançou uma espécie de passaporte de vacinação. O Excelsior Pass, como foi chamado, é um aplicativo que exibe um QR Code com dados de moradores de Nova York e que pode ser mostrado aos estabelecimentos, como restaurantes e lojas. Os estabelecimentos têm outro aplicativo para escanear o QR Code e verificar se a pessoa foi vacinada contra COVID-19, e portanto, liberar seu acesso ao local. No entanto, ainda há muitas pessoas em muitas áreas que desejam a vacina e estão tendo dificuldade em obtê-la, e o passaporte pode significar nesse momento mais discriminação contra pessoas negras e pobres do que proteção coletiva. Além, claro, de trazer uma discussão importante sobre privacidade e uso de dados por parte do governo ou de empresas privadas.

Aumentar o tamanho físico, o número total e a acessibilidade dos locais onde os consumidores podem receber as vacinas COVID-19 é essencial, principalmente nas comunidades mais afetadas. As vacinações em grande escala requerem locais em grande escala, como estádios e centros de conferências. Em grande medida, é preciso ir até onde as pessoas estão, democratizar o acesso a internet e a aparelhos tecnológicos, e fechar esse grande abismo da exclusão digital.  “Todo o poder da tecnologia da informação” pode até estar sendo aplicado ás respostas contra a pandemia, mas ela também precisa ser aplicada para desenvolver políticas sociais mais eficientes e que diminuam e não aumentem as desigualdades já existentes.

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