Um ano depois: Comunidades Negras, Questões Econômicas e o Acesso a Vacina nos Estados Unidos

Há quase um ano escrevi meu primeiro texto para a Revista Afirmativa: COVID-19: Racismo é a ‘condição pré-existente’ mais perigosa nos Estados Unidos. Naquela época, enfatizei que os efeitos devastadores do COVID-19 em comunidades negras só seriam evitados se os governos centralizarem em políticas as pautas que as comunidades negras da diáspora têm dito ao

Por Marry Ferreira 

Imagem: Fábio Motta / Effe 

Há quase um ano escrevi meu primeiro texto para a Revista Afirmativa: COVID-19: Racismo é a ‘condição pré-existente’ mais perigosa nos Estados Unidos. Naquela época, enfatizei que os efeitos devastadores do COVID-19 em comunidades negras só seriam evitados se os governos centralizarem em políticas as pautas que as comunidades negras da diáspora têm dito ao longo dos anos. Hoje, um ano depois do primeiro lockdown nos Estados Unidos, com mais de 29 milhões de casos confirmados de COVID-19 aqui, e mais de 11 milhões no Brasil, a pergunta continua: quantos mais precisarão morrer para que nosso povo seja colocado como prioridade nesse processo?

Sem dúvida alguma, as vacinas continuam sendo uma grande esperança em ter uma situação melhor a médio e longo prazo. Mas, infelizmente, o ritmo de vacinação e a equidade de distribuição ainda está muito aquém do necessário. Das últimas semanas pra cá, quando o ritmo de vacinação se intensificou e mais de 50 milhões de doses foram aplicadas nos Estados Unidos, uma reportagem do New York Times e uma pesquisa do The Associated Press denunciaram que cerca de 17 estados tinham distribuição desproporcional de vacinas. Mesmo em estados onde a população negra é maior, inclusive entre trabalhadores de saúde que são os mais expostos ao vírus. No país, pessoas negras têm quase três vezes mais probabilidade de morrer ao contrair COVID-19 do que pessoas brancas, mas, em estados como Filadélfia, pessoas negras são 44% da população e apenas 12% dos que receberam a vacina. Na Carolina do Norte, elas representam 22% da população e 26% da força de trabalho de saúde, mas apenas 11% das pessoas vacinadas até agora.

Assim como aconteceu no início da pandemia, muitos estados ainda não divulgaram ou sequer registraram dados raciais e de gênero sobre quem foi vacinado. A essa altura, sabemos que dados desagregados são cruciais para as cidades direcionarem e alocarem recursos e testes para aqueles que são mais afetados pelo COVID-19, incluindo imigrantes, que constituem 17% da força de trabalho nos Estados Unidos e grande parte dos chamados trabalhadores essenciais. São esses trabalhadores que não podem ficar em casa, estando muitos deles na área de suprimentos, serviços de alimentação e setor de saúde — muitos sem plano de saúde e sem a possibilidade de licença médica relacionada à COVID-19.

Para quem não está muito familiarizado com o sistema de saúde dos Estados Unidos, o país não possui nenhum sistema de saúde público e gratuito. Seja para casos mais leves ou para tratamentos de doenças mais severas, a única maneira de receber tratamento é através do que aqui é chamado de insurance, os famosos seguros de saúde, que raramente cobrem o valor total do tratamento em questão. Apesar da vacina contra COVID-19 ser gratuita, o tratamento contra o vírus não é. Esses mesmos trabalhadores que são os que mantém o país funcionando, são também os que relatam que receberam contas surpresas de milhares de dólares após procurarem atendimento médico por conta de sintomas de COVID-19. No último mês, o jornal médico The Lancet fez uma pesquisa sobre coronavírus e a resposta de nações de alta renda a pandemia, como os Estados Unidos, França e Canadá, e relatou que a resposta dos EUA ao COVID-19 foi insuficiente e que cerca de 40% das mortes por conta do vírus poderiam ter sido evitadas se houvesse um sistema de saúde gratuito e universal para todes.

Paralelamente a uma vacinação em massa, há ainda uma preocupação a mais que são as novas variantes do COVID-19 que têm sido identificadas em diversas regiões do mundo e podem tornar a situação global ainda mais preocupante. Como se trata de uma doença que não respeita fronteiras, o vírus continuará a ser uma ameaça para todo o mundo enquanto existir. Quanto mais pessoas não vacinadas, maior e potencialmente mais grave o risco coletivo.

Mas, como podemos garantir que a vacina seja distribuída de forma justa a diferentes países e que, dentro desses países, todas as pessoas tenham acesso a ela, principalmente as mais expostas e vulneráveis à pandemia? Ainda em 2020, países como Canadá e o Reino Unido solicitaram o maior número de doses de vacina em relação às suas populações, garantindo mais de nove doses por pessoa e mais de cinco doses por pessoa, respectivamente, já os Estados Unidos compraram 1,2 bilhão de doses de vacinas COVID-19, o suficiente para dar a cada pessoa mais de três doses. No total, 10 países administraram 75% de todas as vacinas produzidas no mundo até Fevereiro de 2021, mesmo que uma distribuição equitativa da vacina seja essencial na luta contra a COVID-19.

O que está sendo chamado de nacionalismo vacinal, essa grande concentração de vacinas em países considerados desenvolvidos, não é apenas moralmente indefensável, mas é destrutiva também. Os países que têm defendido as compras da vacina em massa para uma proteção interna não vão atingir seus objetivos se todos os demais países não forem vacinados. Para que uma vacina contra um vírus tão potente quanto o COVID-19 funcione, é preciso que a maior parte da sociedade seja protegida.

Outro projeto que está sendo proposto é a COVAX, um mecanismo criado pela Organização Mundial da Saúde junto com a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations e Gavi, a aliança de vacinas, para comprar doses suficientes para países de baixa renda, no entanto, o projeto visa cobrir apenas 20% dessa população até o final de 2021.

E essa discussão sobre lucro e saúde como propriedade privada e acima do bem estar da população se estende para além das vacinas. Alguns países também têm dificuldade em obter produtos médicos adequados relacionados à COVID-19, como equipamentos de proteção individual (os chamados EPI), aparelhos e utensílios de diagnósticos, medicamentos e outros dispositivos médicos, como ventiladores. A alta demanda por esses produtos aumentam os preços, o que faz que muitos desses produtos não possam ser comprados em quantidade adequada para países de baixa renda.

Nesse contexto que as patentes, segredos comerciais, e direitos autorais têm sido identificados por alguns grupos como uma grande barreira para fabricantes e fornecedores competentes em todo o mundo aumentarem a produção de produtos médicos COVID-19 para atender à demanda global durante este período. Grupos de países como África do Sul e da Índia apresentaram uma proposta ao Conselho do TRIPS da Organização Mundial do Comércio (OMC) em outubro de 2020 solicitando uma dispensa temporária a ser concedida aos membros da OMC para que eles não tenham que implementar, aplicar ou fazer cumprir certas obrigações relacionadas aos produtos e tecnologias COVID-19 por um determinado período da pandemia. Com esse acordo, membros da OMC concederiam 20 anos de monopólio de patente para produtos (incluindo produtos médicos) se eles satisfizerem certos critérios e condições.

Segundo o grupo, essa “proposta de isenção”, que agora tem o apoio de quase 100 países membros, capacitaria os países a fazer o melhor em seu espaço político para aumentar a capacidade de fabricação, se envolver em colaboração para desenvolver novos tratamentos e ferramentas, permitir a transferência de tecnologia e ter acesso ao aumento da oferta de produtos e ferramentas COVID-19 de outros fabricantes competentes, sem transações caríssimas e que muitas vezes favorecem somente multinacionais.

Agora, nesse marco de um ano dessa pandemia, ainda não há doses de vacina suficientes em nenhum país, mas o déficit nos países pobres é preocupante. Enquanto os líderes mundiais estiverem calculando quais vidas priorizar ao invés de se envolver em uma articulação internacional contra o COVID-19, todos perderemos essa luta.

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