Marry Ferreira* / Imagem: Scott Heins (Getty Images)
Embora o COVID-19 não discrimine de acordo com raça e classe, os anos de desigualdades sociais têm mostrado que as consequências do contágio não são igualmente sentidas por todas as comunidades nos Estados Unidos.
Após mais de dois meses em isolamento social, tenho acompanhado a discussão do Estado de Nova York sobre uma possível reabertura de algumas cidades no próximo mês. De fato, há algumas semanas temos visto a “curva” se estabilizar e uma lenta queda no número de óbitos e pessoas infectadas, como resultado da adoção de medidas como o distanciamento social e o crescente números de testes. No dia 08 de abril, 2,825 casos de COVID19 foram confirmados e 799 pessoas faleceram em menos de 24 horas. Hoje, 9 de maio, foram 604 casos confirmados e 216 óbitos nas últimas 24 horas. Todos filhas(os), mães, pais, amigas(os), parentes de alguém.
Para que a reabertura aconteça, alguns passos estabelecidos por organizações de saúde precisam ser cumpridos, como a proteção de trabalhadores essenciais, o aumento da capacidade de assistência médica, e a criação de instalações de isolamento para pessoas com COVID-19 que não conseguem se auto-isolar. As medidas estabelecidas pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças são pensadas para evitar uma nova onda de contaminação no país.
O que me leva a escrever sobre isso é o meu lugar enquanto mulher negra brasileira imigrante nos Estados Unidos. Assim como no Brasil, vejo aqui o impacto dessa pandemia e do racismo nos que caminham ao meu lado em solo estrangeiro. Os pronunciamentos de que a pandemia do coronavírus colocou “todos no mesmo barco” ignoram as diferenças raciais sistêmicas muito reais que permitem que as pessoas brancas enfrentam a mesma tempestade com muito mais recursos. Enquanto a preocupação de alguns é reorganizar a agenda para ter entretenimento em casa, outros não têm acesso aos produtos considerados essenciais para diminuir a proliferação do vírus, como água potável, álcool gel, máscaras e distanciamento social. E se os índices desproporcionais de hospitalizações e óbitos de pessoas negras relatam que muitas dessas disparidades estruturais não estão sendo consideradas nas políticas de combate a pandemia, os dados de reabertura levantam a questão: quem sairá vivo dessa?
Uma pesquisa realizada pelo Estado de Nova York revelou que negros e hispânicos correm maior risco à medida que os estados reabrem. Pessoas negras corresponderam a 21% dos novos casos de COVID-19 entre as 1.200 pessoas que foram hospitalizadas nos últimos dias. Os dados foram coletados durante a “queda da curva” do COVID-19 no começo de maio, e em mais de 100 hospitais em todo o estado. De fato, os dados não mentem desde o começo da pandemia. No começo de abril, no Condado de Wayne, no Estado de Michigan, pessoas negras respondiam por 40% das mortes por coronavírus, mesmo representando 14,1% da população. Na cidade de Nova York, negros representam 28% das mortes e são 22% da população da cidade. No geral, nos Estados Unidos, pessoas negras tem 2,6 vezes mais chance de morrer do que as pessoas brancas, e também são os mais impactados financeiramente pela pandemia. Uma pesquisa da Pew Research divulgou que 44% deles perderam ou conhecem alguém que tenha perdido o emprego/salário desde março, comparado com 38% em relação a pessoas brancas. 73% das pessoas negras também não possuem fundos emergenciais para cobrir três meses de despesas em caso de emergência, comparando com 47% em relação a pessoas brancas.
O que também não é surpreendente, é como que os protestos de reabertura do país continuam enviando uma mensagem clara de quais vidas importam. A classe média branca americana continua ignorando as fortes disparidades raciais na mortalidade por COVID-19 ao ressaltar o desejo de reabrir estabelecimentos imediatamente. No Estado de Michigan, onde ocorreu o um dos mais recentes protestos do país, pessoas brancas portando armas exigiam o fim do bloqueio enquanto carregavam bandeiras confederadas e suásticas. Nos cartazes, frases como “eu quero cortar meu cabelo” revelam o que nós, brasileiras(os) negras(os), já sabemos: o racismo é a ‘condição pré-existente’ mais perigosa durante a pandemia. O número de mortos e infectados pelo COVID19 nos Estados Unidos estão caindo, mas os nossos continuam a morrer a índices inimagináveis. Em que momento um corte de cabelo se tornou mais importante do que todas as vidas negras que estão sendo perdidas? No conceito de necropolítica[1], Achille Mbembe deixa claro que os “mecanismos técnicos para conduzir as pessoas à morte” e a “eliminação dos inimigos do Estado” já existem desde os tempos do imperialismo colonial, do período da escravidão. O que muda são somente as estratégias.
Enquanto escrevo esse texto, reconheço meu privilégio de poder estar em casa, enquanto o Instituto de Política Econômica afirma que apenas 20% das pessoas negras nos Estados Unidos tem essa possibilidade. Ficar em casa, usar máscaras e manter um distância de pessoas com o COVID19 são ações para proteção coletiva, mas que não são possíveis para boa parte da população. Constantemente homens negros têm relatado casos de racismo ao usarem máscaras ou bandanas, e pessoas negras correspondem a 52% do total de pessoas sem moradia no país. Além disso, as diretrizes de distanciamento social também tem sido reforçadas através da violência policial em diferentes comunidades negras. Há poucas semanas, enquanto os termômetros marcaram 26° C, o Departamento de Polícia de Nova York distribuía cordialmente máscaras para as dezenas de moradores – em sua maioria brancos – que lotavam os parques da cidade, como medidas para diminuir a transmissão do vírus. No entanto, em todo o país, enquanto a polícia recebe novos poderes para reforçar o distanciamento social, os vídeos de violência policial e criminalização das comunidades negras começam a circular na internet. Muitos deles, mostram policiais algemando e socando homens negros por não estarem usando máscaras em público. De acordo com a NYPD, 81% das intimações por conta da ausência de distanciamento social têm sido feitas para pessoas negras e latinas.
Na falta de um sistema nacional de saúde público e de qualidade, o retorno “ao normal” ameaça a vida das pessoas negras desproporcionalmente nos Estados Unidos. Em 2018, 27.5 milhões de pessoas não tinham plano de saúde, sendo a maioria pessoas negras ou hispânicas não-brancas de famílias de baixa renda. Sabemos que as condições de saúde pré existentes aumentam as chances de morte por COVID19, mas muitas dessas condições vem de práticas institucionais que estabelecem o valor da vida de quem vive e de quem morre.
No Bronx, um distrito majoritariamente negro na cidade de Nova York, a probabilidade de morte por causa do coronavírus é duas vezes maior do que em outros distritos da cidade. Especialistas em saúde pública dizem que as razões devem estar ligadas às altas taxas de diabetes, asma e hipertensão do distrito, algumas das diferentes doenças relacionadas a complicações por coronavírus. É verdade que, quando olhamos com atenção para o histórico do Hunts Point, por exemplo, um bairro no Sul do Bronx, vemos que a área é chamada de Asthma Valley (Vale Asmático) por ter a maior taxa de mortalidade infantil relacionada à asma na cidade. Mas a realidade é que, todos os dias, 15.000 caminhões passam pelo Hunts Points, resultando em taxas de hospitalização 21 vezes maiores do que em outros bairros da cidade. A comunidade é o lar do maior centro de distribuição de alimentos da costa leste, mas as famílias de Hunts Point enfrentam insegurança alimentar e 42,9% dos residentes vivem abaixo da linha da pobreza. O mapa dos casos de coronavírus na cidade de Nova York, mostra que, em 9 de maio, em Hunts Point, 43.99% das pessoas testaram positivamente para o COVID19. Nesta conversa sobre as condições de saúde pré existentes, os resultados de práticas neoliberais e a falta de assistência médica disponível não podem ser ignorados.
Escrevo isso porque, em uma das poucas vezes que fui ao mercado, vi um grupo de três jovens, brancos em torno dos 25 anos, escolhendo aperitivos e comprando bebidas e pipoca para uma reunião num sábado a noite. Eu estava usando máscara e passava álcool gel na mão a cada 5 minutos, além de me dirigir diretamente aos produtos que queria para ir embora o mais depressa possível. Desde então, aquela imagem dos jovens não sai da minha cabeça. Era o início do mês de abril, e os Estados Unidos passava por um dos picos da pandemia. Na mesma semana, li notícias de famílias negras inteiras perdendo seus entes queridos, como Sandy Brown, uma mulher negra norte americana do estado de Michigan que perdeu o marido e o filho na mesma semana devido ao COVID-19. Ainda que a ação dos jovens seja vista como algo individual, não é possível fechar os olhos para os diferentes impactos dessa pandemia nos grupos raciais.
Interromper os efeitos devastadores do COVID-19 em comunidades negras e latinas é centralizar em políticas o que as comunidades negras da diáspora têm dito ao longo dos anos: o fim da violência policial, desigualdade de gênero, encarceramento em massa, e o aumento da igualdade no acesso à educação, emprego e moradia, e mais. Nas palavras de Carolina de Jesus sobre o Brasil, o mundo “precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.” É preciso tirar das comunidades minorizadas a responsabilidade de desenvolver estratégias que diminuam o impacto de desigualdades pelas quais elas não são responsáveis. É o tempo de enfatizar um sistema de saúde público de qualidade onde o acesso à saúde seja um direito humano incontestável. Vida longa ao SUS.
*Marry Ferreira é jornalista graduada pela Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, e mestranda em Public Media na Fordham University, em Nova York. É envolvida com diferentes organizações negras nos Estados Unidos, concentrando seus esforços no uso da mídia para promover a igualdade de gênero e a justiça racial, sendo também uma das organizadoras da Marcha das Mulheres Negras no país em 2018 e 2019. Marry é atualmente Representante da Juventude nas Nações Unidas para a Associação Internacional de Mulheres em Rádio e Televisão (IAWRT-USA), e co-fundadora do Kilomba Collective, primeiro coletivo de mulheres negras brasileiras nos Estados Unidos.
[1] MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed., São Paulo: n-1 edições, 2018.