“Menina bonita”, “cantora”, “percussionista”, “namorada de alguém”; foram algumas das expressões do presidente ao se dirigir a jovem ganhadora de um prêmio internacional de aprendizagem técnica
“Afrodescendente gosta de um batuque de um tambor”. Foram essas as palavras proferidas pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a visita à fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, em São Paulo, na última sexta-feira (2). A fala do presidente foi dirigida a Luiza Eduarda Leôncio, uma jovem negra de 20 anos, operadora especialista da Volkswagen, que por se destacar como a melhor aprendiz da empresa foi contemplada com o prêmio internacional Apprentice Award 202.
O presidente visitava a fábrica da montadora de automóveis para o anúncio de um investimento bilionário na empresa, e começou a interagir com Luiza ao percebê-la entre o grupo que o acompanhava. Na mesma ocasião, como pode ser conferido no vídeo, em questões de minutos o presidente segue com comentários absurdos de racistas e sexistas sobre a jovem.
Em suposto tom de “brincadeira”, Lula segue perguntando se Luiza, a quem se refere como “essa menina bonita”, seria “cantora”, “namorada de alguém” ou “percussionista” – em uma atitude racista e sexista, porque sob o olhar do presidente, uma jovem negra só poderia estar naquele espaço fosse para apresentar-se com uma expressão de arte parte da imensa e diversa cultura negra brasileira; ou como namorada-acompanhante de alguém. O presidente chega ao ponto de perguntar se a jovem namoraria com ele, mas em seguida afirmou que ela não aceitaria porque “tem coisa melhor no mercado”.
Lula então traz Luiza Eduarda pelo braço à frente do palco, utilizando-a como exemplo de inspiração para outros jovens, à medida que anunciava uma importante política de incentivo da juventude para acesso e permanência à educação básica. Durante sua fala, o presidente celebrava: “o país mudou”.
Não está em questionamento a importância da política anunciada pelo governo, ou nenhuma outra política que beneficie as parcelas mais carentes da população, destacadamente negras. Isso é obrigação do presidente que se elegeu fundamentalmente com os votos de nossa gente negra, pobre, das mulheres e juventudes negras. O que questionamos, presidente, é: O que mudou em um país que segue reforçando as “imagens de controle” sobre meninas e mulheres negras em lugares de estereótipos raciais, fetichização e sexualização? O que mudou em um país que o ícone máximo de uma esquerda supostamente progressista não consegue olhar, perceber e respeitar uma mulher negra junto a ele, que está ali pelo mérito de sua inteligência e capacidade técnica? O que mudou quando o líder máximo do Estado brasileiro se sente à vontade para fazer piadas de cunho racista e machista, ainda sob a alegação de falso elogio? Aos olhos da branquitude, ainda somos meros objetos de servidão e chacota, não é mesmo?
Ao dirigir-se à Luiza de forma estereotipada e preconceituosa, o presidente não apenas a reduziu como indivíduo, mas também perpetuou narrativas que há séculos sexualizam e desumanizam as pessoas negras, especialmente as mulheres negras.
É fundamental ressaltar que esse incidente não é um evento isolado, mas sim um reflexo de uma realidade em que nós, pessoas negras, continuamos a enfrentar discriminação sistemática em todas as esferas da sociedade, incluindo na política e no mundo corporativo, sobretudo em espaços de poder.
O imaginário da branquitude não falha em nos limitar a estereótipos, e somos lembradas como perfil eleitoral sem o qual o senhor, presidente, não teria sido eleito. Mas, com uma vastidão de nomes aptos, esse imaginário ainda não é capaz de visualizar a representação de uma mulher negra no Supremo Tribunal Federal, ou de reconhecer nossas contribuições históricas e políticas para esse país. Enquanto aposta no tokenismo para legitimar um suposto discurso antirracista em seu governo, seu projeto orçamentário relega o menor montante aos ministérios da Igualdade Racial (R$ 163 milhões) e das Mulheres (R$208 milhões).
Com isso não queremos dizer que apoiamos a direita enquanto perspectiva possível de defesa dos direitos humanos e a luta contra o racismo. Jamais! Mas esse episódio, do qual a Assessoria de Comunicação do Governo e a mídia hegemônica vem tentando abafar, acima de tudo demonstra que a perpetuação do pacto de narciso da branquitude não é exclusiva da direita. A esquerda brasileira, gerida pela supremacia branca, também não renunciou às idéias escravistas. Para eles também as mulheres negras não são vistas como sujeitas políticas e intelectuais, elas também não reconhecidas ou valorizadas.
Por outro lado, esta mesma esquerda branca escolhe compartilhar a imagem de um presidente cercado por cidadãos comuns que representam a diversidade da população nacional, enquanto, paradoxalmente, não consegue interagir com uma mulher negra sem expressar preconceitos em rede nacional. É porque essa mesma esquerda progressista, é, na verdade, gerida, pensada e concentrada na mão da supremacia branca, cuja formação nos clássicos teóricos da sociologia, do marxismo, não lhes gera compreensão crítica de seus lugares de poder, violência e privilégio. Com isso, nem de longe defendemos que a direita brasileira é melhor para nós, sabemos que eles são inimigos históricos da população negra, infrigidores de toda forma de direitos humanos, de preservação da vida e do meio ambiente.
Diante do caos político que se tornou o Brasil desde o crescimento do bolsonarismo e a passagem desastrosa do ex-presidente pelo Palácio do Planalto, é quase que regimentado o melindre, o tabu e até a proibição de criticar o governo Lula. Mas nós, da equipe editorial desta mídia que vos fala, somos radicalmente a favor da narrativa como forma de reflexão e debate, é esse o nosso compromisso. Não é de hoje que o presidente Lula convive com a força, potência e coerência do pensamento e luta negra brasileira, já deu tempo de aprender, e se ainda não fez, o que fica negritado é o racismo e o machismo naturalizado em suas concepções políticas e ideológicas.