A jovem senhora conta que desde muito pequena não era simpática às limitações estabelecidas para as meninas
Por Andressa Franco e Patrícia Rosa
Uma senhora com muita juventude no astral, cheia de histórias e de bem com a vida: essa é Dona Marinalva Barbosa. A baiana de Salvador tem 69 anos, completados no dia 05 de março, “ao menos é o que consta nos documentos”, ela brinca. O aniversário foi comemorado com uma transmissão ao vivo animadíssima na sua rede social. Pois ela gosta de uma aglomeração, mas do jeito que é seguro. Hoje ela obedece o isolamento social, como medida de prevenção à covid-19, mas não deixa de celebrar a vida.
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A soteropolitana cresceu no bairro do Engenho Velho de Brotas. Com uma infância tranquila, ela nos conta aos risos que era muito peralta. Suas brincadeiras prediletas fugiam dos padrões impostos pela sociedade para uma garota, pois ela gostava mesmo era de brincar na rua, jogar gude, empinar arraia: “eu tinha bonecas, mas não era tanto a minha praia preferida não”.
Filha única, de funcionários públicos, que trabalhavam muito, e a menina ficava aos cuidados da avó paterna, dona Maria Borges Barbosa, para ela: “Vovó Maria Cunga, um poço de sabedoria”. Ela conta que as duas tinham uma relação de parceria e amizade, além de um espelho de orientação. Marinalva recebeu da matriarca o apelido de “Navinha”. Na juventude se debruçava para escutar a experiência da avó, mas não entendia a maneira dela se comunicar: apenas com ditados. Mas o tempo e a maturidade mudaram sua percepção: “Muitas das coisas que ela falava eu vim entender depois de velha”, lembra, antes de recitar o ditado predileto entre os tantos que ouviu: “O bom da viagem é a demora”.
O tempo de escola foi um período de disciplina, mas também de muita traquinagem. Ela estudou no Colégio Estadual Góes Calmon, no bairro de Brotas, e sempre tirava boas notas. Em compensação, o padre, que ocupava a função de gestor da instituição na época, não era capaz de conter os planos mirabolantes que a jovem Navinha arquitetava com os amigos para se divertir nas aulas vagas.
Certa vez, no ano de 1968, ela conta que fizeram um túnel secreto atrás da cantina da escola. “A gente dizia que ia estudar na casa de um colega e levávamos papelão e roupas velhas, porque a roupa ficava impregnada de barro, e a gente ia, tapava a entrada do túnel com um armário, caía na rua, pintava, apertava as buzinas das portas, bulia nos ônibus, corria, corria e voltava pra escola”, conta ela, cheia de lembranças. E não parava por aí, dentro das escola também tinha “arte” escondida: ela pegava as respostas das provas para passar aos colegas. Ela conta que foram tantas as travessuras, que brinca que gostaria de reunir todos os seus professores em praça pública e pedir perdão.
Apesar das peraltices, Dona Marinalva lembra exatamente o que fazia quando aconteceu o Golpe de 64: estudava. Ela e outros colegas estavam em uma biblioteca pública na Praça da Sé, com apenas 12 anos e já morria de medo da polícia. “O moço da biblioteca apareceu gritando ‘fecha, fecha, vão embora, vão pras casas de vocês, estourou a revolução!’. E a gente lá sabia que diabo era isso?”. Quando finalmente chegou em casa, depois de passar por muitos militares no caminho, encontrou o pai preocupado, prestes a ir ao seu encontro, “Não pode sair, não pode conversar, estado de sítio, 20h ninguém na rua”, alertava.
Em 1970 terminou o colegial e nos conta orgulhosa que, assim como a maioria dos colegas, conseguiu ingressar na faculdade. O contato com os amigos da juventude ela mantém até hoje através de um grupo da turma no WhatsApp, uma de suas distrações preferidas na quarentena. Ela acha as figurinhas um barato, e sabe por onde todos os colegas andam.
Dona do seu destino, quando partiu para faculdade buscou o autoconhecimento nos caminhos que trilhou, até encontrar a carreira profissional que mais lhe agradou. No início, o sonho era cursar matemática, mas na época só era oferecido na Universidade Federal da Bahia. A então pré-vestibulanda optou por um curso familiar aos números, em uma faculdade particular da cidade, e cursou economia por 2 anos. Estudava à noite para poder trabalhar, mas logo entendeu que aquele ainda não era o seu forte: “Levei 2 anos estudando história da economia, eu queria uma coisa mais palpável, pra mim eu estava perdendo tempo”.
Dona Marinalva conta que seu pai, com medo que ela abandonasse os estudos, sempre lhe dizia: “Sem educação não se vai a lugar nenhum, eu não tive oportunidade, mas quero que você tenha”. Nessa época a jovem viu uma seleção para datilografia, se interessou e começou a trabalhar na área de saúde, lá ela encontrou o seu curso do coração: o serviço social. Logo ela se inscreveu para mais um vestibular, dessa vez na Universidade Católica de Salvador, em busca do curso que queria. A mensalidade não era barata, mas ela pensava: “o que eu ganho dá pra pagar”. Nesse momento da conversa, cantarola animada “O pequeno burguês”, do Martinho da Vila, que era a trilha sonora daquele momento da sua vida:
“Felicidade, passei no vestibular
Mas a faculdade é particular…”
Classificada para o novo curso, ela conta que bateu o pânico: o prazo para realizar a matrícula estava batendo na porta e seu pai não estava na cidade para apoiar com o valor. Sem ter a quem recorrer, ela trabalhava tensa. Foi quando um médico, negro como ela, a parabenizou pela aprovação e notou a preocupação no rosto da jovem. Ao retornar de viagem, o seu pai quitou a dívida. Dona Marinalva lembra das palavras do médico para seu pai, como se tivesse acontecido ontem: “Eu que estudei com dificuldade, vou ajudar a todo mundo que tiver, porventura, uma dificuldade. Sua filha é estudiosa, é uma pessoa que a gente sabe que luta”.
Nesse caminho, ela encontrou recepções negativas também, como a da esposa do chefe do seu pai, que não entendia como a filha do motorista poderia passar no vestibular e os filhos dela não. Com a personalidade forte que tem, ela não poderia deixar isso barato, aguardou paciente o dia da sua formatura, foi quando deu sua resposta: “Na minha formatura, eu disse umas boas à ela, se não eu não me chamaria Marinalva. Eu não ia morrer com aquilo engasgado”.
A assistente social conseguiu concluir o curso aos 23 anos, com 7 semestres e meio: “Eu fazia as matérias opcionais, as curriculares, as obrigatórias. Eu fazia qualquer sacrifício para poder terminar mais cedo, então minha luta foi essa” conta orgulhosa, considerando todos os percalços do caminho que incluíam uma rotina de trabalho exaustiva. O curioso é que Dona Marinalva nem mesmo queria uma festa de formatura: “Eu quis fazer uma bobagem na conclusão, como todo jovem rebelde contra as imposições da sociedade. Eu achava uma cafonice a formatura, já formou tem nada de ficar fazendo aquela solenidade”. No fim das contas, acabou cedendo para fazer a alegria do pai: “Ele morreu feliz da vida, satisfeito com a filha que ele colocou no mundo”.
Dona Marinalva tem dois bairros no coração, o que nasceu, e o que escolheu viver: Pernambués, onde mora há mais de 40 anos. Conquistou seu apartamento aos 27 anos, antes disso passou por outro momento de luta, nada de lazer até juntar o dinheiro para realizar seu grande sonho, mesmo enfrentando o machismo dos que estranharam uma mulher vivendo sozinha naquela época, ela chamava de carta de alforria. “Eu considero isso uma glória, uma guerra, uma vitória, tem coisas assim que marcam muito”, entre lágrimas e soluços, recorda o momento em que recebeu as chaves de sua casa, conquista que também tem uma trilha sonora especial, dessa vez na voz de Maria Bethânia, ela canta “Sonho Meu” entre lágrimas, mas ressalta: “É choro de alegria, não é de tristeza não”.
Seis anos depois, teve sua primeira e única filha, Jamile, com quem tem uma relação muito tranquila e de parceria: “Ela faz de tudo pra me agradar, até além da conta, acho que ela podia curtir mais a vida e esquecer de mim, mas ela é muito grudada”. Uma das alegrias de Dona Marinalva é que sua amada avó tenha conhecido a bisnetinha, já que dizia que só iria desencarnar quando Navinha tivesse sua filha, e ela tinha certeza de que seria menina.
A teimosia da vó era tanta, que foram oito acidentes cardiovasculares (AVC), e em cada susto ouvia os médicos dizerem que seria o último, e a velhinha era tão sensitiva, que chegou a dizer a um dos médicos que tanto previa sua morte que ele partiria antes dela, o que de fato aconteceu. Aos 90 anos, conheceu sua bisneta, a tão esperada “filha de Navinha” e poucos meses depois faleceu, em paz.
Dona Marinalva nos conta que a perda foi tão dolorida que apenas três anos depois, quando foi necessário retirar os ossos, é que “a ficha caiu”, e finalmente viveu seu luto, transformando a “Vovó Maria Cunga” em seu guia espiritual, a quem recorre nos momentos de desespero, já que não tem afinidades com religião. Da mesma maneira, tem seu pai também como guia, e não se importa que achem piegas. Ela recorda bem como ele pedia para que a família continuasse alegres depois de sua morte e “liberou” todo mundo para curtir o carnaval, caso viesse a morrer próximo à data, e assim aconteceu.
“A minha mãe era católica, apostólica e ‘romântica’, falo assim porque eu acredito que Deus é único qualquer que seja o parâmetro que você frequente”, apesar de, sob influência da mãe, ter sido catequista e frequentado retiros espirituais, acumulou inúmeras decepções com diversas atitudes que observava na igreja, com muito ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’. “Detesto ir em uma igreja, não me sinto bem, não vou, cortei totalmente os laços. Fui crescendo e fui buscar alguma coisa como referência, como apoio em um desespero, um desabafo. Aí fui pra umbanda, aprendi a fazer alguns rituais por lá, mas me decepcionei também. Falei: olha… vou orar, me concentrar com Deus, com o cosmos, o grande arquiteto do universo tá aí, o fogo, a terra, a água, o ar, e vou viver, sabe? Não é ninguém que vai me ensinar isso. Aí eu sou hoje esotérica, da linha de que a gente coaduna com Deus, que a gente tenta ser o melhor que pode”, narra.
Ela reconhece ter dificuldades para assumir suas perdas, a pandemia tem sido um período difícil, já que fica sabendo com frequência de pessoas próximas que foram contaminadas ou acabaram morrendo em decorrência do vírus, mas está otimista com a vacina, que tomou dias depois da nossa conversa.
Dona Marinalva confessa que não vê a hora de que tudo volte ao normal: “O que mais amo na vida é de um samba, de sambar até ficar molhada de suor, uma praia pra tomar sol e uma cerveja, reunindo os amigos pra bater papo e dar risada”. Até lá, encontra outras ocupações, como o curso técnico de teatro online, e diz ser a vovó da turma, mais velha que todos os professores, que dirá dos alunos, diferente de quando estava na universidade e era a mascote. Essa tendência artística ela também alimenta com as telas que pinta e pendura no corredor de casa: “Eu não sei pegar em um compasso, aí quando as telas estão prontas, penso: eu psicografei, não fui eu, não fui eu mesmo”, gargalha.
Ela também frequentava a Universidade Aberta da Terceira Idade, na UNEB, um grupo que integra há 18 anos, faz algumas apresentações, e já participou de congressos fora do estado, como em Manaus, Foz do Iguaçu e Palmas.
Por fim, foi ela quem precisou se despedir para fazer o dever de casa do curso de teatro, porque se dependesse da gente, a conversa não acabava mais. Mas não encerrou a ligação sem antes deixar um recado emocionado e cheio de auto estima: “Quando a gente se aposenta, a gente é chamado de inativo, mas não é bem assim. Eu trabalhei a vida inteira e minha vida foi muito enriquecedora nesse aspecto humano, eu sei que fui importante. Sempre houve preconceito e sempre vai haver, mas não devemos ficar na retaguarda, meu pai dizia que eu nasci ousada, eu nunca me submeti!”.