Por Andressa Franco
Uma nota técnica publicada pela Defensoria Pública da União (DPU) na última semana recomendou a retirada de homenagens a escravocratas e eugenistas de locais públicos no Brasil. A proposta é analisar a legalidade, viabilidade, razoabilidade e pertinência jurídica da retirada dos nomes dessas figuras históricas de praças, ruas, pontes e prédios públicos.
“Não se pode aceitar que espaços construídos ou mantidos pelo Estado, sejam lugares de celebração de quem outrora legitimou hierarquias raciais até hoje presentes em nossa sociedade”, diz um trecho do documento, elaborado pelo Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da DPU, que argumenta que a medida é uma forma de reparação à população negra.
A iniciativa foi provocada por uma intimação da DPU para contribuir em uma audiência pública em São Luís (MA), que debate a moralidade administrativa da homenagem prestada ao psiquiatra Nina Rodrigues, que nomeia um estabelecimento público de saúde na capital maranhense.
Isso porque o médico defendia ideias racistas e eugenistas, como a criminalização e estigmatização de grupos vulnerabilizados, como a população negra e indígena, teorizando que negros são “naturalmente delinquentes”. Baseado no racismo científico do século XIX, Nina sustentava que negros e indígenas tinham uma mentalidade atrasada devido a fatores biológicos e culturais, e deveriam ser julgados de maneira diferenciada no sistema penal brasileiro, pois possuíam uma capacidade moral e intelectual inferior. Em Salvador (BA), o Instituto Médico Legal também leva o nome do médico.
Justiça de transição
A nota técnica emitida pela Defensoria se propõe então a servir de base para outros casos similares, a partir de quatro principais tópicos:
- Aplicação da justiça de transição aos direitos da população negra no Brasil;
- Dimensões da justiça de transição aplicáveis ao combate ao racismo: direito à verdade, à memória, à justiça e à reparação;
- Pertinência da retirada do nome de pessoas associadas à escravidão, racismo e eugenia de locais públicos como medida de verdade, memória e reparação histórica;
- Atual compromisso do Estado Democrático de Direito com o combate ao racismo e a suas causas.
Entre as ações tomadas como exemplo pelos autores da nota, está a Lei nº 8.2025/2023, promulgada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em novembro de 2023, proibindo manter ou instalar monumentos ou homenagens a escravocratas e eugenistas. No entanto, a medida foi revogada no último dia 2 de janeiro pelo prefeito Eduardo Paes (PSD).
No intuito de fomentar essa discussão, que foram criados projetos como o Salvador Escravista e Galeria de Racistas. O primeiro busca mapear ruas e monumentos que homenageiam pessoas que estiveram relacionadas e construíram fortunas com o tráfico de africanos e escravizando pessoas. Já a Galeria de Racistas têm dimensão nacional. Foi desenvolvida pelo Coletivo de Historiadores Negros Tereza de Benguela, com o objetivo de pautar a partir de um aporte teórico e acadêmico a retirada desses monumentos pela participação dessas figuras na escravidão indígena e negra.
Trata-se de iniciativas que questionam a instauração desses monumentos como um instrumento de limpeza moral, apagando os crimes que essas figuras cometeram, e se inserem em um debate ainda mais profundo, presente no conceito de “invisibilidade exposta”, de Emerson Giumbelli. “São monumentos como o crucifixo, que sabemos que estão ali, passamos por eles, mas não refletimos sobre sua importância ou objetivos. É aí que esse objeto funciona porque é naturalizado e legitimado. É preciso tirar da invisibilidade e questionar”, explicou a doutoranda em Cultura Afro-Brasileira, Camilla Fogaça, à Afirmativa para uma matéria sobre o tema.
A nota técnica da DPU chama atenção ainda para a responsabilidade do Estado na escravização de pessoas negras no Brasil, caracterizada pelo documento como uma política de Estado, sendo estruturalmente legitimada, normalizada e incentivada por diferentes dimensões dos poderes públicos daquele contexto.
O órgão conclui por fim que a retirada de locais públicos de homenagens a personagens relacionados ao escravismo, ao racismo e à eugenia é uma demanda reparatória “coberta de legalidade, eficácia, razoabilidade e legitimidade, sendo capaz de produzir efeito reverso ao tributo prestado outrora, significando que o Estado brasileiro, em sua atual conformação democrática, não compactua com a manutenção de deferências carregadas de violência contra grupos vulnerabilizados, em especial contra a população negra brasileira.”