Invisibilidade exposta: o que devemos fazer com monumentos de racistas nas cidades?

Ativistas defendem ações reparadoras e reconhecimento de lideranças negras para promover a reflexão sobre quem são os homenageados nos espaços públicos

Ativistas defendem ações reparadoras e reconhecimento de lideranças negras para promover a reflexão sobre quem são os homenageados nos espaços públicos

Por Andressa Franco

Imagem: GABRIEL SCHLICKMANN

No último dia 27 de julho, foi inaugurada na Praça Cairu em Salvador, uma obra de arte em homenagem a Maria Felipa, heroína da Independência do Brasil na Bahia. A estátua, feita pela artista soteropolitana Nadia Taquary, é uma das raras homenagens de reconhecimento às populações negras pelas ruas do país. 

Nomes como Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares, Luíza Mahin, Maria Firmina dos Reis, Preta Tia Simoa, mulheres negras referências para as populações negras, ainda estão às margens da historiografia oficial. 

Em contrapartida, sobram monumentos e homenagens a figuras como Cristóvão Colombo, Barão de Cotegipe, Padre Antônio Vieira e Princesa Isabel. Escravistas e colonizadores, que hoje tem estátuas, placas, nomeiam colégios, praças ou outros elementos da paisagem urbana. 

Foi o que motivou os ativistas baianos Morgana Damásio e Ricardo Caian a substituírem o nome da princesa Isabel pelo de Dandara dos Palmares em placas de avenida em Salvador (BA) no dia 13 de maio. Uma referência à falsa abolição. Morgana trabalha com estratégia de comunicação para organizações da sociedade civil, e diariamente cruza com as placas da Avenida, o que lhe causava desconforto. 

“Houveram revoltas, quilombos, mas ainda paira a ideia de que uma mulher branca foi protagonista de uma suposta libertação do povo negro. Eu disse que um dia a cidade acordaria com as placas trocadas, e o Ricardo disse ‘bora’. E fomos”, lembra.

Morgana Damásio e Ricardo Caian substituíram o nome da princesa Isabel pelo de Dandara dos Palmares em placas de avenida em Salvador (BA) – Imagem: Arquivo Pessoal

A ação viralizou rapidamente nas redes sociais e também nos jornais. Muitas mensagens de apoio, mas também ataques e mensagens de ódio. Foram acusados de vândalos e até de dificultar o trabalho dos entregadores de aplicativo. “Como se essa avenida não fosse uma das vias mais conhecidas da cidade, como se houvesse alguma preocupação com o trabalho precarizado desses jovens, majoritariamente negros”, reflete Morgana.

A intervenção de Morgana e Ricardo chegou até a ser deslegitimada em um artigo de opinião publicado no jornal A Tarde. “Tratava o legado de Dandara dos Palmares como invencionismo, atribuído à falta de provas documentais. Quem pôde escrever as histórias e como lhes interessava contá-las? A nós, negros e indígenas, coube a história oral”, ressalta.

No dia 15 de maio, os adesivos foram removidos pela prefeitura. Mas, não sem antes muitas pessoas tirarem foto com as placas e serem alcançados pelo mesmo desconforto que movimentou Morgana e Ricardo. 

A ação é semelhante ao que o Coletivo Juntos realizou em 2021 nas cidades de São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Brasília (DF), quando cobriram placas de rua com nome de racistas e militares do período ditatorial, por nomes de personalidades negras como Tereza Banguela, Jacinta Maria de Santana, Carolina Maria de Jesus. 

Invisibilidade exposta

Desde 2020 têm crescido e dividido opiniões os debates sobre ações como essas. A derrubada de estátuas se popularizou nos Estados Unidos durante os protestos decorrentes do assassinato de George Floyd. Caíram Cristóvão Colombo, Jefferson Davis. Na Inglaterra, caiu Edward Colston. No Brasil, em São Paulo (SP), incendiaram a estátua de Borba Gato em 2021.

Foi nesse contexto de debate sobre história pública, memória e escravidão, que surgiram iniciativas como Salvador Escravista e Galeria de Racistas.

O primeiro busca mapear ruas e monumentos que homenageiam pessoas que estiveram relacionadas e construíram fortunas com o tráfico de africanos e escravizando pessoas. Alanna Perônio é mestranda em História da África e Diáspora e uma das envolvidas na iniciativa. Ela explica que a partir deste levantamento foram convidados pesquisadores especialistas em cada um dos personagens para problematizá-los. 

“Um dos objetivos é levar esse debate para a população por meio da educação. Esses personagens não serão nem devem ser esquecidos ou ignorados, mas precisamos considerar suas contradições”, pondera. A plataforma é dividida em: homenagens controversas, homenagens reparadoras e lugares esquecidos.

Morgana exemplifica com o Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador (BA). Uma instituição pública que carrega o nome de alguém que teorizou que negros são ‘naturalmente delinquentes’. Em 2022, a Defensoria Pública da Bahia fez uma recomendação para que o Governo do Estado trocasse o nome. O nome permanece.

Já a Galeria de Racistas tem dimensão nacional. Foi desenvolvida pelo Coletivo de Historiadores Negros Tereza de Benguela, em parceria com o Notícia Preta. O objetivo do mapeamento era pautar a partir de um aporte teórico e acadêmico a retirada desses monumentos pela participação dessas figuras na escravidão indígena e negra. No Reino Unido, uma iniciativa parecida é o mapa colaborativo “Toppled Monuments Archive”.

As categorias de personagens expostos na galeria são: proprietários de escravizados, traficantes de escravizados, eugenistas, e responsáveis pelo genocídio de quilombolas, negros e escravizados. 

A doutoranda em Cultura Afro-Brasileira, Camilla Fogaça, integra o coletivo Tereza de Benguela, e chama atenção para o conceito da “invisibilidade exposta”, de Emerson Giumbelli. “São monumentos como o crucifixo, que sabemos que estão ali, passamos por eles, mas não refletimos sobre sua importância ou objetivos. É aí que esse objeto funciona porque é naturalizado e legitimado. É preciso tirar da invisibilidade e questionar.”

Camilla Fogaça é doutoranda em Cultura Afro-Brasileira e integra o coletivo Tereza de Benguela- Imagem: Reprodução Redes Sociais

Jorge Santana é Professor de História, Doutor em Ciências Sociais e um dos curadores da galeria. Para ele, os monumentos fazem parte de um arcabouço de construção de heróis responsáveis pela fundação e construção do Brasil. Assim, presentes nos livros didáticos, hinos, museus. O professor também acredita que os monumentos funcionam como um instrumento de limpeza moral, apagando os crimes que essas figuras comentaram.

“É importante ressaltar que a ONU considera a escravidão africana como um crime de genocídio. Portanto incompatível com a constituição vigente desse país que exista uma estátua de um genocida”, afirma.

Jorge Santana é Professor de História, Doutor em Ciências Sociais e um dos curadores da Galeria dos Racistas – Imagem: Reprodução Redes Sociais
 “Não termina nos monumentos”

Apesar da pouca organização do poder público em relação a catalogar os monumentos, a Galeria de Racistas conseguiu fazer esse trabalho, ao menos na cidade de São Paulo. O levantamento localizou 135 estátuas e bustos, sendo 91% em homenagem a pessoas brancas, 5% a japoneses, 2% a negros e 2% a indígenas. No recorte de gênero, 91% são homens, 5% são mulheres e 4% não têm gênero definido.

Além da recém inaugurada estátua de Maria Felipa, a capital baiana tem outros monumentos de lideranças negras, como Mãe Gilda de Ogum e Mãe Stella de Oxóssi. A primeira já foi alvo de vandalismo duas vezes, e a segunda já foi incendiada. 

Para Alanna, esses monumentos especificamente chamam atenção por se tratarem de mulheres que até pouco tempo estavam vivas. Como também aconteceu com a placa de Marielle Franco, por exemplo. Assim, é a memória delas que está sendo atacada, contraditoriamente, por suas ações de combate ao racismo.

Alanna Perônio é mestranda em História da África e Diáspora – Imagem: Luiza Lopes

Morgana observa que na medida em que avançamos no reconhecimento público de mulheres negras, existe a tentativa de apagamento dessa memória. “Quando Marielle foi assassinada houveram tentativas de deslegitimação da sua imagem com notícias falsas, cruéis. Não bastou a morte física, existiu o empenho de estender isso a sua memória.”

Entre os caminhos para combater esse cenário, Alanna cita o desenvolvimento de projetos de resgate de memória e circuito de turismo histórico, divulgação de material didático e instrução educacional para valorização dessa memória, como escolas renomeadas.

Camila concorda. Para ela, é preciso educar e ensinar a partir de novos símbolos. “Quando uma criança brinca numa praça, olha determinada figura e pergunta quem é, trazer a memória dessa personagem negra é um aspecto educacional importante e de projeção de futuro”, defende. 

Além disso, não basta construir de forma genérica e sem identidade, como a Estátua da Mãe Preta ou a Estátua do Índio Caçador, em São Paulo (SP). “Isso diz muito do lugar que ocupam, o que elas significam para os artistas, para sociedade, para cidade. Não termina nos monumentos, eles são apenas o estopim para uma luta muito maior para produzir uma história que desconstrua essa narrativa portuguesa/branca brasileira”, finaliza Jorge.

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