Projeto de Lei que torna a política permanente em instituições federais de ensino ainda aguarda votação no Senado. Monitoramento e acesso ao mercado de trabalho são desafios reservados ao futuro da legislação.
Por Andressa Franco e Patrícia Rosa
Imagem: Uol
Na última quarta-feira (11), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou a edição número 64 da revista de Planejamento e Políticas Públicas (PPP). O sistema de cotas no Brasil está entre os oito artigos que abordam a avaliação de políticas governamentais com foco no interesse público.
Intitulado “Impacto das cotas no desempenho de estudantes no curso e no longo prazo”, a produção faz estimativas sobre os impactos das cotas nas universidades públicas, com base em informações do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2017.
No Brasil, os cotistas apresentaram um desempenho melhor do que os não cotistas. De acordo com o documento, as cotas podem contribuir para a redução das desigualdades socioeconômicas sem prejudicar a qualidade do ensino superior no país, como argumentado pela parcela da população contrária à política.
11 anos da Lei de Cotas
No dia 29 de agosto deste ano a Lei de Cotas (Lei nº 12.711) completou 11 anos. A legislação sancionada em 2012 foi projetada para atuar enquanto política reparatória, diante de séculos de escravidão, e de direitos negados a população negra.
A Constituição brasileira de 1824 garantia a escola como um direito aos cidadãos, classificação que não se estendia aos escravizados e negros. Ainda que libertos, era preciso ter rendimentos, posses e “a soma de oitocentos mil réis” para ter garantidos os direitos. A própria legislação do império afirmava que “negros não podiam frequentar escolas, pois eram considerados doentes de moléstias contagiosas”.
Quase 200 anos depois, a Lei que colaborou para a mudança desse cenário tem atravessado revisões, e ainda é atacada. Em agosto, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 5384/20, que torna permanente a política de cotas para o ingresso de negros, indígenas, pessoas com deficiência e alunos de escolas públicas em instituições federais de ensino. O PL reformula o sistema de cotas. Entre as mudanças estão, a inclusão de quilombolas; ampliação para pós-graduação; auxílio estudantil; manutenção da revisão a cada 10 anos, acrescido de monitoramentos anuais. O texto ainda será votado no Senado. Questões como monitoramento e acesso ao mercado de trabalho são desafios reservados ao futuro dessa legislação.
Impacto da Lei de Cotas
O caminho para o acesso à Lei de Cotas no Brasil não foi fruto de benevolência de um sistema que sempre nos excluiu, mas de muita luta. A exemplo da Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, e da Conferência de Durban, em 2001, que já pautavam essa demanda. Antes disso, em 1983, o então deputado federal Abdias Nascimento já apresentava um projeto de lei onde expõe argumentos para a adoção de políticas compensatórias.
Pioneira, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) foi a primeira do país a implantar o sistema de cotas. Embora a política tenha sido aprovada no Rio de Janeiro pela Alerj, ela não foi implantada devido a contestações das próprias universidades.
Em 2010, antes da Lei de Cotas, apenas 6% dos estudantes entraram na Universidade por reserva de vagas. Em 2019 o número subiu para 35%, de acordo com a pesquisa “Avaliação da Políticas de Ações Afirmativas no Ensino Superior no Brasil: Resultados e desafios futuros”.
Para a pró-reitora de Ações Afirmativas da UNEB, Dina Maria Rosário, a política da qual a universidade foi pioneira é revolucionária, por pautar outras epistemologias e cumprir o papel social da instituição. “Numa sociedade excludente e patriarcal, a presença de pobres, negros e negras, indígenas, quilombolas, travestis, homens e mulheres trans, pessoas com deficiência, frequentando o espaço de saber e poder que a universidade representa é revolucionária”, refelete.
Os impactos nos corredores são avaliados como positivos por Lídia Barreto, assessora da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas da UNEB. “Para quem trabalha na UNEB há mais de 20 anos, é muito evidente a mudança do cenário. Dessas salas de aula têm saído profissionais das mais diversas áreas. São negros, ciganos, indígenas, que estão mudando índices de pesquisas sobre as posições ocupadas por esses segmentos sociais no mundo do trabalho.”
Elaine Borges, de 27 anos, é mestranda na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), considerada a universidade mais negra do Brasil. Ela acessou tanto a graduação, quanto a pós, como cotista. Embora tenha passado em primeiro lugar, a Lei de Cotas facilitou seu acesso à bolsa permanência, o que a permitiu concluir o curso.
“Nosso modo de criar conhecimento também é ciência. Conhecimentos de comunidades tradicionais, povos quilombolas, religiões de matriz africana, têm dialogado cada vez mais com a perspectiva acadêmica”, pontua.
A Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA) foram as primeiras federais a aprovarem o sistema de cotas. A brasiliense Raquel Santana tem 30 anos, e é graduada e mestra em Direito pela UnB, onde ingressou através da Lei de Cotas. Hoje, trabalha como assessora jurídica no Tribunal Superior do Trabalho. Oriunda de escolas públicas, foi na universidade que compreendeu a interseccionalidade do marcador racial que atravessa sua existência.
“Assim como acontece com muitas mulheres negras, minha percepção sobre as desigualdades que eu vivenciava tinha por base o fato da gente ser pobre”, pondera.
Para ela, um dos principais impactos da presença da população negra nas universidades, é a epistemologia feminista negra. Além de tensionar as estruturas racistas que preservam o poder de ocupação dos espaços à branquitude.
Mas nem sempre foi assim. Ângela Figueiredo é professora da UFRB, e lembra do período da graduação em antropologia e do mestrado em ciências sociais, na UFBA da década de 90, como um espaço com número reduzido de estudantes negros, principalmente na pós-graduação. “Nem o mais fervoroso apoiador da política de cotas imaginou o impacto que teria na produção do conhecimento, produzindo novos conceitos e fazendo outros ruirem”.
Quando olha para a produção acadêmica da geração atual, avalia que o principal avanço foi a própria concepção de raça.“Saímos de trabalhos que se esforçavam por concluir destacando a existência do racismo, para trabalhos que começam já apontando sua existência”, enfatiza.
População negra na pós-graduação
O acesso da população negra à pós-graduação é tão recente, que a primeira mulher negra a conquistar um doutorado no Brasil estaria hoje com 92 anos de idade. Anaide Freitas morreu em fevereiro de 2022. Formada em medicina pela UFBA em 1950, ela realizou seu doutorado em Santos (SP).
Segundo balanço de 2019 da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), apenas 29% dos alunos na pós-graduação são negros.
Elaine, por exemplo, foi a primeira da família a cursar uma pós-graduação. “Eu entrei com vontade de pesquisar mais sobre minhas histórias, sobre lesbianidade, e comecei a me frustrar”, conta a jovem, que teve dificuldade no acesso à bibliografias que não fossem de homens brancos. “Eu chorava e pensava: isso aqui não é pra mim. Depois que eu tive acesso à literatura negra, eu comecei a entender.” O objetivo da mestranda é que sua pesquisa seja utilizada para a produção de políticas públicas. Mas lamenta não ver tantos colegas negros e negras também ocupando esse espaço.
“Na minha geração qualquer fala mais politicamente preocupada com a realidade social era rapidamente caracterizada como ativista e portanto pouco científica. Não é à toa que essa geração tem buscado inspiração nos autores do passado que ficaram esquecidos da literatura oficial. Essa geração está preocupada em conhecer para intervir”, analisa Ângela.
Vale destacar que muitos dos mestrandos e doutorandos têm a docência entre as principais alternativas de carreira. No entanto, profissionais negros são apenas 21,6% dos docentes das universidades brasileiras, segundo dados do Censo de Educação Superior divulgados em 2022.
“A questão dos docentes é ainda muito tímida, existem ilhas que trabalham com a questão racial, como os núcleos de estudos afrobrasileiros e grupos correlatos. Fora esses espaços a discussão ainda é muito tímida e esparsa”, pontua a professora Renísia C. García Filice, participante da Comissão de Heteroidentificação na Pós-Graduação da Universidade de Brasília (UnB).
Mercado de Trabalho
Dados do Instituto iDados, de 2020, mostram que 37,9% dos homens e 33,2% das mulheres negras com diploma de ensino superior trabalham em cargos que não exigem o diploma. Para Ângela Figueiredo, o debate do acesso ao mercado de trabalho para a geração que ingressou nas universidades através das cotas é prioridade. “Vivemos uma crise no capitalismo global, precarização das relações de trabalho, neoliberalismo e diminuição da participação do Estado nos setores cruciais. O que implica para nós negros o fechamento de postos de trabalho.”
A professora pesquisou em seu doutorado a classe média negra. Entre as conclusões, o emprego público se destacou como canal de mobilidade social. “O concurso público opera menos por mecanismos de discriminação do que o mercado de trabalho privado.” Assim, defende a criação de mecanismos de estímulo à contratação de pessoas negras em empresas privadas.
“A gente sai da graduação na perspectiva de buscar um trabalho. A universidade é um investimento a longo prazo. Só que temos necessidades básicas mais urgentes”, acrescenta Elaine.
Como revisar?
Embora, de acordo com o IBGE, a população negra tenha se tornado pela primeira vez maioria no ensino superior em instituições públicas brasileiras, com 50,3% das matrículas, é preciso observar o dado com cautela.
“Eu vejo com muito cuidado a afirmação de que já somos 50%. Isso não se sustenta nem visualmente, nem nas fragilidades dessa coleta de dados. Há de se ter uma coleta mais acurada, o monitoramento ainda está muito frágil, e muitas universidades ainda não têm bancas de heteroidentificação”, pondera Renísia.
Além disso, entrar na universidade não é sinônimo de permanecer. Principalmente para os alunos que não podem se dedicar exclusivamente aos estudos, deixando de trabalhar. Ou seja, não basta olhar para a porcentagem de matrículas, mas também para a de formandos.
“Existe a determinação legal da revisão periódica, mas eu acredito que esse futuro ainda vai ser duradouro. Espero que as pessoas negras não fiquem apenas com um diploma na mão, mas efetivamente acessem o mercado de trabalho”, acrescenta Raquel.
Para as pesquisadoras ouvidas pela Afirmativa, o futuro da política de cotas precisa ser de ampliação. Não apenas na pós-graduação, mas no mercado de trabalho. Para Ângela Figueiredo, o monitoramento dos impactos da Lei precisa estar atento a esse indicador.
“Quando se pensa em processos históricos tão desiguais, reparação é apenas facultar o acesso de ingresso igualitário? Isso é apenas o começo! O percentual de ingresso na universidade é uma etapa inicial de um processo muito mais longo e que precisa ser muito mais revolucionário”, finaliza Ângela.