Por Késsia Carolaine
No dia 18 de novembro de 2015, cerca de 100 mil mulheres negras de todo o país se reuniram em Brasília (DF). A Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver reuniu diversas mulheres que, diariamente, lutam por uma vida mais digna. Quem se fez presente naquele momento histórico há quase 10 anos foi Fabrícia Dias. Ativista, artista, atriz, doula, mãe, esposa, amiga, irmã, filha, ela tem 39 anos e, assim como as diversas mulheres negras brasileiras, teve sua vida atravessada por lutas e obstáculos.
Nascida e criada no Morro da Fonte Grande, em Vitória (ES), desde cedo aprendeu a importância de uma comunidade para uma pessoa preta. Em todo o Brasil, há coletivos e instituições em que mulheres negras se organizam para ir à luta em favor de seus direitos. Crescendo em uma comunidade com forte presença de mulheres negras, Fabrícia começou a entender que essa comunhão era importante e que futuramente ela entenderia que o aquilombamento é também um ato político.
“No meu território, eu sempre caminhei com mulheres negras ao meu lado. Primeiro, a gente está bem aquilombada com as nossas, e, num determinado momento, a gente começa a perceber que esse movimento de estar junto também tem uma força política”, observa.
Início do ativismo

É a partir dos anos 2000, no período de sua adolescência, que o ativismo e a militância começam a fazer parte de sua trajetória.
“Eu sou fruto dos projetos sociais dos anos 2000. Desde os meus 14 anos, eu articulo movimentos sociais, estudantis. Apesar de não ser vista como uma profissão, a gente entende que a militância também é um lugar de muito trabalho, de muitas expertises e de compor esses acúmulos”, relata.
No decorrer dos anos que viriam, Fabrícia só fortaleceria ainda mais sua luta, principalmente pelas mulheres negras.
Para ela, a arte tem um forte teor político e de mudança. Foi durante sua graduação em teatro na Universidade Federal da Bahia (UFBA), juntamente com seus colegas e sua professora Ivani Tavares, que ela fez parte de uma grande mudança no curso: a estruturação do primeiro Fórum Negro das Artes Cênicas, que mais tarde se tornou o Fórum Negro de Cultura da UFBA, em 2017.
“A gente foi justamente mexer na característica epistêmica do curso curricular, dentro de um sistema que é muito poderoso. Foi um processo político composto por estudantes, docentes, técnicos, mas também comunidades externas, promotores, pessoas políticas, grandes iniciativas de coletivos”, conta. Na Bahia, suas passagens por organizações como Odara – Instituto da Mulher Negra, Coletivo Zerefinas e Companhia Teatral Abdias do Nascimento também ajudaram a consolidar sua luta feminista e antirracista, além da arte como um agente transformador.
Ativismo em São João del-Rei (MG)
Assim como muitas mulheres negras país afora, Fabrícia está integrada em diversas organizações e movimentos sociais. Em 2020, dois anos após ter sido mãe, ela começou a fazer parte da Associação de Doulas do Estado de Minas Gerais, do Fórum das Mulheres de São João del-Rei (MG) e do Linha Nigra, cuja agenda de luta é a justiça reprodutiva, climática e alimentar das mulheres negras e periféricas. É por meio desse coletivo que Fabrícia começa a se organizar ativamente para a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver.
“Quando eu voltei de Salvador (BA) para São João, fortaleci essa vivência com as mulheres, entendendo a potência de estar junto, de co-criar outros espaços e se aprofundar também no feminismo”. Além de ser uma das ativistas à frente do Comitê Impulsor de São João del-Rei e Região, Fabrícia também integra a organização estadual da Marcha.

O coletivo Linha Nigra já iniciava as articulações para a Marcha desde 2022. Ainda assim, Fabrícia já percebia que o envolvimento de políticos não iria acontecer. “Esse caminho já vem sendo alimentado entre nós, pelas nossas, há alguns anos. E a gente sabe que não é uma tarefa fácil, que, para muitos olhares políticos, é como se nós estivéssemos só querendo ‘causar’. Muita parte política não acredita no que a gente quer construir.”
Apesar dessa dificuldade, o movimento não deixa de articular ações para movimentar mulheres de todo o país e conseguir financiamento para a Marcha. Desde o começo do ano, o Comitê Impulsor de São João del-Rei e Região vem se articulando para levar as mulheres do território para Brasília. Em 2023, as ativistas foram até a Câmara Municipal com uma carta para tentar diálogo com os então vereadores. O que receberam foi indiferença, já que, nem no período das eleições municipais, as mulheres foram procuradas pelos candidatos. Apesar do desinteresse e falta de diálogo do legislativo, a luta de Fabrícia e suas companheiras têm uma motivação maior.
Dentre as iniciativas e articulações que vêm acontecendo no país todo, há uma dificuldade em alcançar especialmente as mulheres dos interiores. “Sabemos dos desafios para mobilizar o poder público. Mas o nosso maior desafio nesse momento, e que mais nos interessa, é que essa marcha tenha visibilidade e chegue até as mulheres negras”, reflete.
São João del-Rei, por exemplo, carrega as marcas da colonização não apenas na sua arquitetura. É perceptível que as sequelas do período escravocrata seguem presentes na cidade, porém de forma velada. Muitas mulheres negras carecem de direitos básicos, como acesso ao pré-natal, e vivem sobrecarregadas no trabalho, que muitas vezes é subserviente. É por essas mulheres que Fabrícia luta desde a sua juventude, e são elas que a motivam a estar presente na Marcha no dia 25 de novembro.
“Isso é um ponto motivador para nós. Conseguir conversar com as mulheres, plantar uma sementinha de transformação e mudança para quem não tem essa vivência, ou para quem, infelizmente, está imersa no mundo da exploração capitalista, patriarcal e racista.”
É aí que, para Fabrícia, a Marcha ganha outro sentido. Mais do que um ato político, ela vira uma ferramenta de quebra de ciclo. Levar a conversa para o interior é enfrentar o apagamento cotidiano dessas mulheres e mostrar que a luta contra o racismo e o machismo também é feita de gestos concretos, de olho no olho, de troca. O ponto de força que Fabrícia menciona está justamente nisso: na capacidade de ir além dos grandes centros e levar, de pouco em pouco, a consciência de que mudar a estrutura começa quando a gente mexe no chão da vida real.
A importância da marcha para as mulheres negras
A mulher negra vem sendo exemplo de potência em diversas áreas da vida. Fabrícia é uma dessas mulheres. Além da importância da marcha enquanto luta em busca dos direitos não só para as mulheres negras, mas para a sociedade no geral, há também a importância da visibilidade dessas mulheres na mudança para um país mais justo e com mais equidade.
A capixaba acredita que a mulher negra tem a potência necessária para impulsionar a mudança. “Precisamos criar oportunidades para que as mulheres negras do Brasil realizem os seus projetos, os seus futuros possíveis, com dignidade, reparação histórica e Bem Viver”. Para ela, o Bem Viver passa necessariamente pelo combate às violências racial e de gênero, pela garantia de terra e moradia, e pelo direito de existir com alegria e plenitude, sem a carga constante de precisar provar o próprio valor.

Em 2015, Fabrícia esteve em Brasília acompanhada de milhares de mulheres negras na primeira Marcha. Assim como suas companheiras, ao longo de sua vida, sua intelectualidade, potência e valor enquanto mulher e pessoa preta foram invisibilizados. A marcha, além de ser um lugar de luta, também é um lugar em que mulheres negras assumem uma posição de agentes de transformação. Fabrícia acredita que esse também é um espaço em que as potências e intelectualidade de mulheres negras são colocadas no lugar de protagonismo.
“Estar na marcha é justamente um lugar de afirmação das iniciativas, da intelectualidade, da potência política e social que nós, mulheres negras, também temos para propor projetos para um Brasil antirracista”, afirma.
A materialização desses “futuros possíveis”, no entanto, depende de uma reconfiguração concreta de recursos e poder, um processo que frequentemente enfrenta obstáculos institucionais e a lentidão das transformações sociais. A Marcha, assim, atua como um catalisador necessário à inércia dessas estruturas, forçando um diálogo que vai além do simbólico e exige mudanças materiais tangíveis.
“Marchar por Reparação e Bem Viver é uma forma de falar que nós estamos atentas e que é urgente que essa proposta política seja levada a sério e que seja transformada em realidade social para as pessoas negras. Talvez assim a gente comece a pensar numa sociedade brasileira que compreendeu e colabora para a construção de uma consciência negra.”
*Este texto faz parte da série Mulheres que Marcham: o voo perene das mulheres negras por Reparação e Bem Viver, que tem como objetivo apresentar oito mulheres negras que, em movimento contínuo, impulsionam a 2ª Marcha das Mulheres Negras.