Gordofobia, racismo e sistema de saúde: porque a história de Vitor Augusto não é um caso isolado

Princípios basilares do SUS, Constituição Federal e o Código de ética médica garantem acesso à saúde sem distinções. Mas, na prática pessoas gordas são culpabilizadas pelas negligências que sofrem

Princípios basilares do SUS, Constituição Federal e o Código de ética médica garantem acesso à saúde sem distinções. Mas, na prática pessoas gordas são culpabilizadas pelas negligências que sofrem

Por Andressa Franco e Patrícia Rosa

Imagem: Reprodução Facebook

Nas últimas semanas, o nome do jovem Vitor Augusto Marcos tomou diversas manchetes por conta de uma violência mais comum do que se imagina. O rapaz morreu aos 25 anos no dia 6 de janeiro após aguardar por atendimento dentro de uma ambulância por três horas, devido a falta de macas para obesos no Hospital Geral de Taipas, em São Paulo.

Apesar da comoção gerada com a história de Vitor e de sua mãe, Andrea Marcos, a negligência reservada a corpos gordos e negros não é uma exceção na rede de saúde brasileira.

A luta contra a gordofobia, afinal, é um debate que vai além da autoestima. Se torna estrutural a partir do momento que pessoas gordas têm seus direitos negligenciados. O amor próprio não poderia impedir a mortes de Vitor Augusto. Sendo necessário reconhecer que a gordofobia, assim como o racismo, mata. 

Gordofobia e racismo estruturais se chocam com princípios basilares do SUS

“Acho que a história do meu tio se parece muito com a do Vitor”, afirma a assistente de comunicação Jész Ipólito, de 31 anos. Seu tio, Márcio Ipólito, era um homem negro e gordo, que morreu sem atendimento em um hospital em São José do Rio Preto (SP), aos 54 anos, em maio de 2020.

Márcio, que era catador de recicláveis e trabalhava desde criança, sempre teve muitas dores por conta do esforço físico. Apesar de recorrer à UPA com frequência em busca de medicação, e de investigar seu quadro clínico, ele nunca conseguiu saber o que tinha.

Jész Ipólito e seu tio Márcio Ipólito que morreu, como Vitor, esperando atendimeto na emergência de um hopital público/ Imagem: Arquivo Pessoal

No dia que ele morreu, conta Jész, já apresentava um quadro de dores articulares há muito tempo. Ele não conseguia andar, mas nunca conseguia médico especializado para fazer exames. Sentindo fortes dores no peito e no joelho, ele precisou ir à emergência. Uma vez lá, “simplesmente deixaram ele na espera e não foi atendido.”

“Aí que se encontra com a história do Vitor”, explica. “Primeiro porque ele era um homem negro, grande, então já se pressupõe que ele é forte, pode aguentar mais um pouco. O racismo institucional foram fatores cruciais para determinar a vida e a morte.”

Márcio Ipólito esperando por atendimento em hospital pouco antes de morrer / Imagem: Arquivo Pessoal

Percepção endossada pela advogada Leilane Leta, que classifica a morte de Vitor como evidente negligência do Estado, reflexo da gordofobia e do racismo estruturantes. Dentre os princípios basilares do SUS, lembra, estão o da universalidade e o da equidade.

“De acordo com o primeiro, todo cidadão tem direito à atenção integral à saúde, já o segundo garante que a assistência à saúde se dê livre de preconceitos de qualquer tipo”, ressalta. “Então absolutamente ninguém deveria morrer por não ter equipamentos adequados, menos ainda ser responsabilizado por essa morte.”

A advogada explica que os entes federativos que administram o hospital devem responder pela negligência, cabendo direito de regresso contra gestores e administradores diretos. O hospital, defende, também deve ser responsabilizado, incluindo o pagamento de indenizações.

Despreparo do sistema de saúde

Segundo estudo realizado pelo Atlas Mundial da Obesidade em 2022 e divulgado pela Federação Mundial da Obesidade, é esperado que o Brasil viva com 29,7% da população adulta com obesidade até 2030. Considerando esses números, o que explica o despreparo para cuidar de uma parcela tão expressiva da sociedade?

Para Jész, que já atuou de perto no ativismo contra a gordofobia, o sistema de saúde brasileiro está preparado para o processo de emagrecimento das pessoas gordas. Mas não para atendê-las em situações de emergência, como no caso do Vitor.

Assim, existem centros que tratam a obesidade; direcionam as pessoas para tratamento multidisciplinar no processo de emagrecimento; na entrada na fila de espera para cirurgia bariátrica. Mas não se encontra da mesma forma políticas públicas para tratar essas pessoas além do viés do emagrecimento.

Desconsiderando genética, ambiente, situação socioeconômica em que está inserido, e individualizando uma questão de saúde pública. “Logo, você não vai pensar que precisa ter uma maca que vá comportar até 300kg; que o cinto de segurança da ambulância precisa segurar uma pessoa maior. São detalhes que fazem diferença”, completa a assistente de comunicação.

A criadora de conteúdo digital e ativista Thaís Carla denunciou em abril de 2022 um caso de gordofobia e despreparo que sofreu no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba (PR). Ela buscou atendimento após sofrer uma lesão durante a prática de exercícios físicos, e a unidade não tinha cadeiras de rodas para atender a paciente.

“A luta agora é pra virar lei”

No dia 15 de janeiro, Dona Andrea, mãe de Vitor, liderou uma caminhada em memória do seu filho, e pedindo por justiça, na Avenida Paulista, em São Paulo. Em uma de suas falas, afirmou que “a luta agora é pra virar lei”. Tecla na qual já vinha apertando desde as primeiras entrevistas depois da morte de Vitor.

Segundo Leilane, ainda que não tenhamos leis em âmbito nacional voltadas especificamente para isso, existe respaldo legal que ampare essas pessoas, e que, pelo menos em teoria, deveria garantir que casos como o do Vitor e do Márcio não acontecessem.

Para a advogada Leilane Leta os dispositivos de lei e príncipios do SUS deveriam assegurar o atendimento diferenciado para as pessoas gordas / Imagem: Arquivo pessoal

A própria Constituição Federal, Lei 8080 (Lei Orgânica da Saúde) e o Código de ética médica, aponta, conta com vários dispositivos que dão respaldo legal à garantia de acesso à saúde sem distinções. Cabendo nesses casos indenização e condenação por negligência.

Com autoria do deputado federal, José Guimarães (PT-CE), a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1786, apresentado em 2022, que inclui a gordofobia nos crimes previstos no PL  7.716/1989, a Lei de Injúria racial. 

Na prática, no entanto, Leilane avalia que ainda falta muita conscientização, debates e implementações de políticas públicas para que situações como essa não se repitam. “Falta que a questão chegue com seriedade aos gestores públicos, agentes de saúde, operadores do Direito, muitas vezes alheios a esses debates e sujeitos a reproduzirem esses preconceitos”, acrescenta a advogada.

Mais ainda, pontua, é fundamental que as pessoas parem de ser culpabilizadas pela violência que sofreram justamente por quem deveria garantir a implementação dos seus direitos. Do contrário, as leis de proteção se tornam ineficazes.

Entre as medidas a serem tomadas, destaca, é preciso exigir em todas as unidades de saúde macas e equipamentos capazes de receber corpos diversos; viabilizar a implementação de políticas públicas envolvendo profissionais qualificados; responsabilização dos agentes públicos.

Já Jész chama atenção ainda para a necessidade urgente de revisar e atualizar a acessibilidade dentro de hospitais, UPAs, unidades de saúde da família, entre outros espaços. Desde o tamanho das portas, dos assentos, macas e mesas para todos os tipos de procedimentos, até braçadeiras para aferir a pressão, por exemplo.

60,4% das pessoas gordas no Brasil já sofreram gordofobia em consulta médica

No Brasil em 2022, a gordofobia atingiu 85,3% das população gorda e obesa, de acordo com a pesquisa da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) e da Sociedade Brasileira de Metabologia e Endocrinologia (SBEM). Dos casos apresentados, 60,4% acontecem em consulta médica. 

O coletivo Vai Ter Gorda há sete anos atua no combate à gordofobia, direito à vida e pelo acesso à saúde. Para Adriana Santos, fundadora do movimento, “a gente não pode parar a nossa luta até que haja verdadeira conscientização, direitos de acessos e garantias para toda a população”. Destaca ainda a importância das pessoas irem às ruas para dar visibilidade à causa e lutar contra as exclusões sociais.

Adriana Santos é fundadora do movimento Vai ter Gorda / Imagem: Arquivo Pessoal

“É  preciso desconstruir o que foi posto, que ser gorda é ser doente”, pondera Adriana. “Quando pessoas gordas e negras assumirem essa medicina, se tornando médicos, acredito que haja melhor entendimento sobre esses corpos. Enquanto pessoas não gordas e não negras falarem sobre nós, vamos continuar sendo violentadas e invisibilizadas.”

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