Por Eliana de Jesus Santos e Márcia Fabiana*
Novembro anuncia uma jornada que entrelaça as histórias de quatro mulheres negras politicamente organizadas na maternagem atípica: Maysa Pereira e Joana Pereira Costa, articuladoras da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, Gisa Camilo, pesquisadora da maternagem atípica, e Jussara Mejia, advogada engajada na defesa dos direitos de crianças autistas. Todas conectam trajetórias e especificidades que se encontram na força coletiva, cuja maternagem envolve cuidados que vão além do cotidiano padrão.
Vivendo em Brasília (DF), a voz de Maysa Pereira ecoa muito além dos limites da cidade. A mãe do Tayê recorda-se do instante em que recebeu o diagnóstico como quem revisita um portal: primeiro, o medo e a insegurança diante de um sistema incapaz de acolher; depois, a revelação: o problema nunca foi seu filho, mas sim uma sociedade que insiste em negar o diverso. “Tayê me ensina todos os dias diferentes modos de viver o mundo.”

Entre encontros híbridos com outras mães negras atípicas, tece uma rede de apoio que não se esgota no dia da Marcha, em 25 de novembro, mas pulsa diariamente como resistência e afeto compartilhado. Porém, reconhecer-se como mãe atípica não foi um processo fácil, por conta disso, um modelo de reparação para ela passa pelo reconhecimento de que o Estado deve garantir políticas públicas inclusivas, antirracistas e anticapacitistas.
Para Maysa, o ideal consiste em um Brasil que perceba a existência de pessoas com deficiência, sem reforçar negligências nas dinâmicas da maternagem. Ou seja, os ambientes políticos precisam se organizar para inserir estes grupos, possibilitar que participem de movimentos, atuando diretamente neles, assim como ocorre na organização da 2ª Marcha, onde encontra garantia de acolhimento.
“Reparação para nós é garantir um futuro para as nossas crianças; Bem viver, para mim, é garantir que meu filho e outras crianças negras e neurodivergentes tenham dignidade, respeito e acesso a direitos.” (Maysa Pereira, mãe atípica e articuladora política da Marcha 2025)
Conforme a pesquisa realizada pela Universidade de Wisconsin-Madison, publicada em 2009, o estresse de uma mãe atípica se compara ao de soldados em guerra. A analogia é baseada na observação de que o padrão de cortisol reduzido – conhecido por “hormônio do estresse” – encontrado nas mães é semelhante ao observado em indivíduos expostos a estresse crônico intenso.
Segundo a psicóloga e especialista em Transtorno do Espectro Autista (TEA), Andresa Ferreira, a comparação é pertinente, pois a cobrança e a responsabilização indevida é cruel! “Mães naturalmente já são culpabilizadas por qualquer coisa que fuja do ‘normal’, e na atipicidade isso é exponencialmente aumentado pelas características que marcam a deficiência”, explica.

Desafios
As dificuldades a que a pessoa negra autista é submetida, mostram todos os dias à engenheira agrônoma Joana Pereira Costa, de 35 anos, o quão desafiador é assegurar que sua filha seja acolhida. Moradora de Goiânia (GO), Joana é mãe de Helena Nogueira, de sete anos.
“Em qualquer lugar, os olhares atravessam nossos filhos com julgamento e desprezo. A sociedade espera que nossas crianças se comportem de forma ‘padronizada’. Quando isso não acontece, somos nós, as mães, que carregamos a culpa e o peso do isolamento”, lamenta.
Para combater essas violências e suas intersecções, ela busca acolhimento nos espaços em que se sente segura. “Sinto-me acolhida entre mães e mulheres negras que entendem a complexidade da maternagem atípica, nos espaços onde minha filha não é vista como um problema”, comenta Joana que é articuladora política da 2ª Marcha das Mulheres Negras.
Ela conta que os espaços de luta são importantes, porque é uma oportunidade de mostrar que a presença de mulher negra e mãe atípica nos ambientes técnicos e estratégicos é fundamental para construir um serviço mais inclusivo, humano e eficiente.

“Acolhimento não é pena – é presença, empatia e ação. Não é possível falar de futuro para a população negra sem incluir as crianças com neurodivergência.” (Joana Pereira Costa, mãe atípica e articuladora política da Marcha 2025)
A 2ª Marcha das Mulheres Negras é um movimento de caráter internacional e busca reunir um milhão de mulheres negras em Brasília (DF) para reivindicar direitos fundamentais e justiça social. O evento é uma continuidade à histórica da ação conjunta que reuniu cerca de 100 mil mulheres negras na capital federal em 2015.
Lema para as mobilizações deste ano, o conceito de “Bem Viver” propõe alternativas focadas no exercício para o coletivo, na sustentabilidade e na valorização da ancestralidade. “A Marcha é um forte espaço onde nos reconhecemos e nos fortalecemos. É a lembrança viva de que não estamos sozinhas, e de que somos muitas, diversas e potentes”, diz Joana entusiasmada.
Maternagem Solo Atípica
Para a mineira Gisa Camilo, a maternagem torna-se mais intensa diante do temor do desamparo: a dúvida sobre quem estará ao lado de suas crias se algo lhe ocorrer. É desse receio que nasce sua luta.
“Quem cuidará do meu filho se eu faltar?” (Gisa Camilo, mãe atípica solo e pesquisadora de Maternagem Atípica)

Gisa é mãe solo de gêmeos – Eleonora e Bartolomeu –, e transformou sua própria trajetória em campo de luta, estudo e resistência. Doutoranda em Educação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora das relações étnico-raciais e da deficiência, vive a maternagem atípica em sua dimensão mais intensa.
Mãe de uma criança autista e outra neurotípica – ou seja, pessoa com funcionamento neurológico, comportamental e cognitivo considerado ‘padrão’ pela sociedade – Gisa revela como os desafios cotidianos se entrelaçam à luta política por direitos, inclusão e reconhecimento. “A minha mãe é meu suporte principal, depois, o ambiente acadêmico.”
Para a pesquisadora, criar, cuidar e educar crianças sempre será desafiador em uma sociedade estruturada pelas desigualdades de raça, gênero e classe.
“Ser mãe é viver 24 horas em estado de vigilância, cuidado e amor. Parece sem descanso, mas é incrivelmente especial perceber como as crianças se relacionam e compreendem o mundo”, declara.
A experiência da maternagem solo atípica a fez compreender o cuidado e a autonomia como dimensões inseparáveis, tanto para ela quanto para os filhos. Por conta disso, sempre que pode, reserva espaço para si mesma. “Foi depois da defesa do meu mestrado que conheci o mar pela primeira vez. Foi um respiro, um presente para mim”, relembra.
Para Andresa Ferreira, a decisão da Gisa de se cuidar, desencadeia efeitos positivos na vida dela e das suas crianças. “Se ela se distancia de si, negligencia o autocuidado, em algum momento vai gerar consequências. Estresse, culpa, falta de paciência e de entendimento assertivo das coisas. Tudo influencia no comportamento e desenvolvimento das crianças também”, assinala a psicóloga.
Autismo e Raça no Brasil
Foi no campo acadêmico que Gisa cunhou o termo Rede de Apoio Transitória, para referir-se às formações, eventos e coletivos que, mesmo temporários, garantiram a ela possibilidade de seguir estudando e produzindo conhecimento. “É trazer o corpo ‘mãeterno’ como território de disputa discursiva e política.”
Há plataformas independentes de inteligência de dados sobre o autismo no Brasil, como o Mapa Autismo Brasil (MAB), que é uma iniciativa pioneira por incluir o protagonismo da própria pessoa autista na produção de dados. A visibilização da maternagem atípica é sobretudo, politizar o debate.
Apesar do avanço nos estudos sobre o tema, as políticas públicas ainda são insuficientes. Os serviços existentes olham pouco para as crianças atípicas e menos ainda para as mães. Luta que passa por disputa de informação, pois até 2022, o IBGE nunca havia incluído condições como do TEA, por exemplo, em seus levantamentos oficiais. De acordo com o próprio Censo de 2022, 2,4 milhões de pessoas são diagnosticadas com autismo no Brasil.
Segundo a pesquisa, em relação à população negra, que representa mais de 56% dos brasileiros, há cerca de 320 mil autistas, o que significa que 1,1% da população negra brasileira é diagnosticada com autismo.
Embora as pessoas autodeclaradas brancas representem o maior percentual de pessoas com autismo, Raphael Alves, analista da equipe técnica temática de pessoas com deficiência e pessoas diagnosticadas com transtorno do espectro autista do Censo Demográfico, adverte que, devido ao racismo, pessoas negras enfrentam maiores dificuldades de acesso ao diagnóstico, o que pode subnotificar o número real de autistas nessa parcela da população.
Acesso
Ainda que a família Holder Cunha, em Porto Velho (RO), conte com acesso e suporte, o cotidiano deles ainda reflete as barreiras que o racismo impõe a pessoas negras com autismo. A rotina, segundo a mãe, Jussara Mejia, de 39 anos, costuma seguir quase o mesmo ritual: acordar cedo, preparar os dois filhos para a escola, depois seguir para o escritório e lidar com a rotina doméstica em conjunto com o marido. No entanto, o cotidiano familiar recebeu novos contornos após o filho primogênito, Lucas Benjamim, 6 anos, receber o diagnóstico de TEA.

Depois que recebeu o diagnóstico, Jussara escolheu percorrer uma rota contrária: não se deixou levar pela dor. Segundo ela, o diagnóstico de ter um filho com TEA não vem só para a criança. Ele atinge a família inteira e cada mãe passa por um luto quando recebe a notícia – seja pela negação, ou pela dificuldade de aceitação de algum parente.
“No meu caso, quem viveu o luto foi o pai. No início, ele acreditava que era ‘coisa da minha cabeça’. Enquanto eu me desesperava em buscar formas de ajudar meu filho. Quanto mais eu estudava, mais entendia a dimensão do espectro autista. Hoje, eu ajudo outras mães”, recorda.
Por perceber que a sociedade, em grande parte, não demonstra interesse em tornar a vida da pessoa com deficiência mais digna, Jussara resolveu fazer da advocacia um meio para defender e promover direitos. Não só em benefício próprio, mas principalmente aos que não têm acesso à informação. Dessa forma, ela encontra meios de garantir com ações e liminares o cumprimento da lei e proteger a cidadania no dia a dia.
“Costumo dizer que meu filho é um dos poucos privilegiados por ter uma mãe advogada, que luta incansavelmente pelos seus direitos. A luta pela inclusão e empatia é o meu lema diário – que deveria ser regra, mas ainda é exceção”, lamenta.
“A Marcha Nacional das Mulheres Negras soma forças à luta contra o racismo, a violência e a desigualdade. Amplia a pauta para incluir também a aceitação das pessoas dentro do espectro, com empatia.” (Jussara Mejia, mãe atípica e advogada)
Diante da realidade que encara, Jussara ensina os filhos a terem autoestima inabalável, praticar empatia e acolhimento sempre que o próximo necessita de ajuda.
“Construí uma família negra. Eu e meu marido, ambos negros, temos um casal de filhos negros e lindos. Meu primogênito é neurodivergente, um menino de sorriso marcante, que hoje recebe suporte para que tenha uma vida normal aos olhos da sociedade, com acesso a direitos básicos como educação, trabalho e família.”
A advogada declara que também os ensina a lidar com preconceitos e situações racistas de forma consciente.
Para fortalecê-los e se sentirem acolhidos, na escola, a professora de Lucas Benjamim é negra. Na clínica, ele conta com terapeutas negras. “O ambiente em que ele vive é de inclusão. O maior medo de toda mãe, atípica ou não, é morrer e deixar os filhos sem o devido amparo”, finaliza.
Maysa e Joana, recebidas com apoio por suas companheiras da Marcha; Gisa, amparada por sua mãe e espaço acadêmico; e Jussara, fortalecida pela presença de sua família, ilustram de forma concreta como a solidariedade e suporte de outras pessoas se manifestam e funcionam no dia a dia delas. Quatro mulheres que transformam suas maternagens em gestos coletivos que vão além das paredes de casa. Na Marcha, elas levarão histórias e lutas às ruas, mostrando que a maternagem atípica é uma força que precisa do suporte de toda comunidade.
*Essa reportagem é um dos produtos do Lab Afirmativa por Reparação e Bem Viver, que contou com apoio do Fundo VidaAfrolatina e do Fundo SAAP/Fase, por meio do edital Agitando Pensamentos 2025. A iniciativa foi realizada em parceria com a Rede de Mulheres Negras do Nordeste e o Comitê Nacional da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver.


