Somente nos primeiros 6 meses de 2023 foram registrados através do Disque 100, canal de denúncias de violações de direitos humanos vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos, 82 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes cometidas por religiosos
Por Elizabeth Souza
Pâmela* tinha 4 anos quando sofreu abuso sexual pela primeira vez. O crime foi cometido por um líder religioso que ministrava aulas de catecismo em uma igreja católica, localizada em um bairro da Zona Norte do Recife (PE). “Acho que eu nunca vou superar isso, mas vou continuar me acolhendo”, diz a jovem, hoje com 29 anos. A violência sofrida por Pâmela faz parte de uma estatística que vem quebrando recordes no Brasil. Em 2022, foram notificados 74.930 casos de estupros, o maior número já registrado na história do país, de acordo com dados do Anuário de Segurança Pública de 2023. No entanto, os casos cometidos por religiosos ainda são pouco evidenciados enquanto a cultura do estupro avança dentro das religiões.
Os registros obtidos através do Disque 100 – canal de denúncias de violações de direitos humanos vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) – também apontam um cenário desolador. Em 2022, foram registradas 23.469 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Nessa conjuntura, chama atenção os dados referentes a crimes cometidos por lideranças religiosas: 41 denúncias. Contudo, esses números ainda não correspondem a uma totalização real dos casos, tendo em vista que a inserção de religiosos como autores desses tipos de crimes é muito recente no Disque 100. “Esse marcador foi estabelecido a partir do 2º semestre de 2022. Ele existe como forma de caracterizar o perfil do suspeito e não tem a finalidade de criminalizar”, informou por email o MDHC.
Em 2023, o avanço desses casos é indiscutível, já que nos primeiros seis meses foram registradas 15.014 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes, representando 63.9% das denúncias registradas durante todo o ano de 2022. Referente aos crimes cometidos por religiosos: 82 denúncias, equivalente ao dobro dos registros obtidos no segundo semestre do ano passado através do Disque 100, número que tende a crescer quando fechar o ano.
“As histórias se repetem. Normalmente o abusador é alguém de confiança, alguém muito próximo, como um pastor ou algum outro líder religioso”, explica Miriam Dias, professora, especialista em proteção da infância e mestranda em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. “Outra coisa que é muito citada nesses casos é a questão do segredo. O abusador faz o pacto do silêncio com a criança, que muitas vezes nem sabe que está sofrendo o abuso”, alerta. Palavras que em muito dialogam com as violências sofridas por Pâmela quando ainda era uma criança de apenas 4 anos.
“Ele era amigo da família, transitava na casa em festas, confraternizações, então provavelmente eu tinha uma certa confiança nele”, relata a jovem ao se lembrar do criminoso que lhe violentou em uma igreja próxima à casa em que morava quando era criança, no Recife. “A gente morava em uma viela que era ao lado de uma igreja católica onde esse homem dava aulas. Ele me seduzia com pipoca, pirulito. Lembro de uma vez ele me chamar assim: “Pam, vem cá, toma pipoca. Lembro de ir até ele dentro da igreja. Eu estava de calcinha, sem blusa, e ele me perguntou se eu queria dormir, e eu dizia que não, mas ele insistia e dizia que me daria doce. Eu fingia que estava dormindo e ele mexia no meu corpo, abria minhas pernas.”
Além disso, a jovem recorda que o agressor a amedrontava com ameaças de que chamaria a sua mãe caso ela não o obedecesse, em um jogo de silenciamento, medo e culpa. E as violências não paravam por aí. “Ele me colocava pra fazer sexo oral nele e ele fazia em mim. Ele também já tentou penetração comigo, lembro de ter doído, ele ficou assustado e parou. Tudo isso nessa ideia de que eu estava dormindo, talvez por isso durante muito tempo eu achava que aquilo era um sonho”, diz Pâmela, que hoje consegue falar sobre as violências sofridas depois de ter buscado ajuda profissional em sessões de terapias, que começaram após vivenciar um doloroso processo de depressão fruto desse e de outros abusos sexuais que vivenciou ao longo da vida.
Menores são as principais vítimas
Os números do Anuário de Segurança Pública de 2023 mostram que as crianças são as principais vítimas de estupro no país: 61,4% de todos os casos registrados em 2022 eram referentes a pessoas entre 0 e 13 anos e 10,4% eram menores de 4 anos. Os dados ainda revelam que meninas negras são as mais vulneráveis, tendo em vista que 88,7% das vítimas de estupro são do sexo feminino e 56,8% são negras, assim como Pâmela.
Estados da região Norte do país se destacam em meio aos números de estupros contra crianças e adolescentes. Roraima e Amapá lideram com taxas de mais de 200 estupros entre vítimas de 0 a 17 anos a cada 100 mil habitantes, de acordo com informações divulgadas pelo Anuário de Segurança Pública. No Nordeste a situação também exige bastante atenção. O Rio Grande do Norte, por exemplo, está entre os estados brasileiros que estão em situação de alerta, apresentando uma piora de 25,9% em relação a 2021.
Alerta vermelho em Pernambuco
Dentre os estados nordestinos, um outro que também chama atenção é Pernambuco. Dados da Secretaria de Defesa Social do estado (SDS-PE) mostram que foram registrados no ano de 2022 o total de 1.989 ocorrências de crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes. No primeiro semestre de 2023 foram 878 ocorrências desse tipo, quantitativo que também tende a aumentar até o fim deste ano. Apesar de a reportagem ter solicitado à SDS o total de crimes sexuais cometidos por religiosos nesses anos, não conseguimos essas informações detalhadas.
“Na minha pesquisa de mestrado trago em alguns momentos a questão da violência sexual contra crianças no contexto religioso, e é impressionante porque o tema da violência sexual contra vulneráveis perpassa todas as religiões”, reitera Miriam Dias, que em sua dissertação pesquisa violência sexual no âmbito religioso.
Um dos casos que ganhou ampla repercussão em Pernambuco aconteceu em 2021, envolvendo o juremeiro Alexandre L’Omi L’Odò, considerado umas das principais lideranças da Jurema – religião afro-indígena – no estado pernambucano. O crime foi descoberto após o vazamento de um vídeo nas redes socias em que o líder religioso aparece em uma cena de sexo com uma menina de 14 anos. O caso gerou revolta dentro das comunidades de religiões de matriz afro-indígenas que, à época, lançaram notas de repúdio e alertaram para que a sociedade não relacionasse tal prática “abominante” aos costumes de fé de religiões como Candomblé, Umbanda e Jurema. Procurada, a assessoria do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) informou que o caso, por envolver crimes sexuais e menores de idade, tramita em segredo de justiça.
“A cultura do estupro está presente em toda a sociedade, independe de qual seja o campo, religioso ou não. É cultural as pessoas se sentirem confortáveis em invadir o corpo de outras pessoas”, denuncia Janielly Azevedo, Iyalorixá do Terreiro de Candomblé Egbè Omo L’Omi, localizado no município de Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife (RMR). “Não posso dizer que as religiões de matrizes africanas estão fora desse lugar. No Candomblé tem o patriarcado, a misoginia, o capitalismo. É preciso que mais pessoas se sintam confortáveis e seguras para fazer a denúncia”, aconselha Janielly, em uma análise que se conecta com as percepções de Miriam Dias através de seus trabalhos realizados nas igrejas.
“Tem todo esse esquema cultural em que o homem exerce autoridade sobre a mulher, isso também é muito apresentado na bíblia, essa questão do patriarcado”, pontua Miriam em uma reflexão que traz à tona o caso mais recente envolvendo crime sexual praticado por uma liderança religiosa em Pernambuco. Padre Airton, fundador da Fundação Terra, foi preso em julho deste ano em meio a investigações de crimes sexuais cometidos por ele. No início de agosto, a Justiça recebeu denúncias envolvendo o sacerdote e outros funcionários da igreja, que viraram réus pelos crimes cometidos. “O papel do líder religioso é associado ao poder, ele acaba tendo esse status, ele se aproveita disso para exercer o abuso de poder, controle emocional, mental, e até a chegar a praticar violência sexual, usando indevidamente a autoridade que ele tem”, explica a professora.
O combate e a conscientização
Tais circunstâncias não deixam negar: a cultura do estupro nos ambientes religiosos é uma evidência e não deve ser ignorada e as religiões precisam urgentemente assumir o papel social de combate a essas violências. “É necessário levar a sensibilização e conscientização para as pessoas saberem que esses problemas existem no ambiente religioso. Discutir essas temáticas nos grupos das igrejas e nos demais espaços e instituições religiosas, com quem trabalha com crianças, adolescentes, com jovens”, reivindica Miriam Dias, que também destaca a importância do fortalecimento das redes de apoio que tenham parceria com profissionais de Conselhos Tutelares, assistentes sociais, médicos, enfermeiros, professores. “As crianças precisam saber que elas podem contar com várias pessoas”, frisa.
“Precisamos ensinar isso para as pessoas porque elas não sabem e a igreja pode ser essa voz em favor das crianças e adolescentes. É interessante que a igreja realize cursos, formações de proteção à infância, sobre legislações, principalmente para as lideranças de dentro da igreja”, dinâmica que também contribui com o ato de denunciar. “O que podemos fazer é o que fazemos aqui: é denunciar, participar de denúncias, educar, fazer questão de apontar os erros porque não importa onde esteja o estuprador, ele precisa ser punido”, complementa a Yalorixá Janielly Azevedo.
Neste sentido, a educação sexual é um caminho importante e que precisa ganhar cada vez mais espaços nos ambientes religiosos e também dentro de casa. “Não tem como falar de prevenção sem falar de sexualidade, a criança precisa conhecer o corpo dela”, sinaliza Miriam, que também é autora do livro “Do meu corpinho eu cuido, sim” e co-autora do livro “Manual da Infância – Os desafios dos pais”. “Educação sexual para crianças é coisa simples, envolve autocuidado, autoproteção, é banho, é corpo, coisas básicas. É preciso quebrar esse tabu porque dessa forma é praticamente impossível realizar o trabalho preventivo”, completa.
Pâmela, atualmente com 29 anos, estudante de psicologia e mãe de um menino de dois anos, também destaca a educação sexual como um caminho essencial para o combate à violência. “Acredito na informação e educação como caminhos para proteger nossas crianças. Meu filho tem dois anos de idade e sabe o que é pênis, o que é vagina, ele conhece o corpo dele, ele sabe quem pode e quem não pode tocar. Na hora de tirar a fralda dele, a gente pede, se ele disser ‘não’ a gente conversa com ele. Acredito que é através do diálogo, do amor que a gente consegue proteger nossas crianças e fazer com que eles também consigam se proteger”, conta a jovem.
Assim como a nossa casa, os ambientes religiosos são relacionados à ideia de espaços seguros, onde a fé, o amor e o cuidado se fazem presentes. Mas, muitos se utilizam dessa idealização e das hierarquias religiosas, bem como status de poder e liderança para violentarem das mais diversas formas pessoas que deveriam ser cuidadas e protegidas. Muitas dessas violências culminam em estupros, como vimos aqui, e essa é uma cultura que tem se propagado há décadas dentro dos ambientes religiosos, não estando individualmente relacionado a uma ou outra religião, mas a todas. Quem não lembra, por exemplo, da imagem do Dalai Lama – líder espiritual dos tibetanos – beijando uma criança na boca em um evento público, em abril deste ano? Ou o caso de João de Deus? E os inúmeros estupros cometidos na igreja católica e abafados pelo Vaticano?
Não é aceitável uma sociedade que seja passível à realidade em que crianças e adolescentes correm perigo nas igrejas, terreiros, centros, sinagogas, mesquitas e/ou na presença de religiosos. Essa é uma luta de todos e a informação, a educação e o compromisso social das instituições e espaços religiosos são rotas essenciais contra a cultura do estupro, que avança com pressa. O combate aos malfeitores da fé é uma urgência que se apresenta em letras garrafais e se materializa nos números que sangram pelo caminho, em meio a falta da verdade de indivíduos que desrespeitam e ignoram o que de mais sagrado o outro possui: a vida.
*O nome da vítima foi alterado para preservar sua identidade