Por Patricia Rosa
“Marcho para não morrer, marcho para viver”. Esse é um dos fios condutores da ativista trans Bruna Ravena, que transformou dores em mobilização e luta, não apenas pelos seus direitos, mas também pelos de outras manas trans e travestis negras do Brasil. Nascida em Manaus (AM) e hoje vivendo em Foz do Iguaçu (PR), Bruna fez do Sul do país seu território de resistência.
Além da militância, ela também constrói sua trajetória na política institucional e na formação acadêmica: é bacharel em administração e já foi candidata a vereadora em Foz do Iguaçu, nas eleições de 2022.
Bruna fala sobre a construção da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, que acontece no dia 25 de novembro, em Brasília (DF), com muita empolgação. Como uma das articuladoras da Marcha no Sul do Brasil, ela afirma que mobilizar sua região é marchar em um território que não acolhe mulheres negras.
“A gente precisa construir esse espaço. No Sul, a gente precisa lutar o dobro, o triplo, para conseguir mobilizar. O território me trouxe esse aprendizado: é difícil, mas não é impossível. A gente não pode desistir. Cada passo que damos, mesmo que seja pequeno, é importante.”
Trajetória pessoal
A manauara iniciou seus passos no Paraná aos 16 anos, passando por cidades como Curitiba, Cascavel e Maringá. Desde 2013, reside em Foz do Iguaçu, onde se forjou, resistiu e lutou por políticas afirmativas de empregabilidade, moradia e dignidade para outras travestis. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), cerca de 90% das travestis e transexuais no Brasil têm a prostituição como fonte de renda, devido à exclusão do mercado de trabalho formal.

Não foi diferente com Bruna: ela precisou recorrer à prostituição como meio de subsistência. Nesse espaço, sentiu na pele as dores de uma vida marcada pela violência, mas também entendeu o quanto era inconformada. Mundana e ariana, não deseja a guerra, mas sabe fazê-la.
“A partir daí, me coloquei nesse lugar como um ato de resistência: viver dessa forma, mas não aceitar a forma que era imposta à minha vivência. Não admitir que, enquanto mulher travesti, eu teria que viver daquela forma. Fui vivendo, mas tentando mudar esse panorama.”
A luta pela inserção no mercado de trabalho continuou. Bruna buscou apoio para elaboração de currículos e chegou a trabalhar em duas empresas paranaenses. Lá, vivenciou desde boas experiências até situações de transfobia. Em uma delas, era obrigada a usar o banheiro masculino para se trocar.
Hoje, um dos sonhos da bacharel em Administração é fazer uma pós-graduação e continuar estudando, além de conquistar uma boa posição no mercado de trabalho.
Se inspirando nas mais velhas e construindo o seu legado
Foi nesse cenário de dor e resistência que Bruna encontrou o movimento trans. Começou nas ações de entrega de preservativos, no apoio à elaboração de currículos, até chegar à sua primeira atividade política do movimento trans no Rio Grande (RS), em 2016, onde conheceu e passou a admirar as suas mais velhas, como Keila Simpson e Jovanna Baby.
“Foi aí que vi que eu queria estar nesse lugar também, fazendo diferença na prática. Quando eu comecei a me envolver com o movimento trans, eu percebi que não era só política, era cuidado. Eu comecei a entender que a militância não é só protesto, é ação direta, é ajudar a comunidade na vida real.”
Na sua caminhada, conheceu e contou com organizações como a ANTRA, o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS), a Aliança Nacional LGBTI+ e a ONG Casa de Malhu, da qual hoje é presidenta.
Bruna é uma das articuladoras do FONATRANS e conta orgulhosa que recebeu a responsabilidade de atuar no Comitê Nacional da Marcha das Mulheres Negras 2025. “Marchar em novembro será um grande orgulho. Saber que pude construir, colaborar, dialogar e fomentar para que outras manas pretas participem desse processo me enche de força.”
Reparação como luta por dignidade
Para Bruna, marchar por reparação é lutar contra todas as violações que já sofreu, contra cada ato de marginalização e pela busca de políticas públicas eficazes. “Marchar por reparação é fazer com que a sociedade nos enxergue com olhos humanos, porque ainda são olhares desumanos, como se o país fosse dividido em dois mundos.”

O Bem Viver, para ela, é que essas reparações se tornem realidade: na justiça social e ambiental, no direito das mulheres negras e das pessoas LGBTQIA+. Por uma sociedade em que mulheres pretas tenham acesso à moradia, mulheres trans tenham a possibilidade de envelhecer, de acessar a educação, de amar sem medo da violência e viver livres do preconceito.
A população trans e travesti no Brasil ainda vive em estado de constante perigo. A expectativa de vida média dessa comunidade é estimada em apenas 35 anos. Entre as vítimas de situações violentas e fatais de transfobia, a população trans negra está desproporcionalmente representada, correspondendo a cerca de 78% dos casos. Os dados são da ANTRA.
“Graças a Deus, passei dos 35 anos. Estou com 39, espero chegar aos 60”, projeta Bruna em sua luta diária para contrariar as estatísticas.
Marchando com emoção e potência
“Nós estamos marchando com mulheres tão acolhedoras, vitoriosas, esplendorosas, mulheres cis e trans que inspiram muito. Vou estar entre outras caras, outros corpos iguais ao meu. Isso é gostoso, é fundamental. Fico feliz, fico emocionada, porque aprendi demais”, ressalta a ativista ao falar sobre a experiência de construção e mobilização para a Marcha.
“Quero construir esse processo de forma plural. Ainda morremos na prostituição, nas ruas, no feminicídio, e são nossos corpos pretos que mais tombam. O medo que mais me assola é morrer com requintes de crueldade. Eu marcho pelas que morreram, mas também pelas que querem viver, e viver dignamente.”

Desafios da articulação no Sul do Brasil
Bruna começou a entender a dimensão do movimento de mulheres negras ao sair do seu território local e dialogar com ativistas de outros estados. “Eu vi que havia um movimento muito maior do que o que tínhamos aqui. ”
Ela aponta que a maior dificuldade é convencer mulheres negras da região a participarem das atividades e encontros. Para ela, cada mulher cis, trans ou travesti que se mobiliza para a Marcha é encarada como uma grande vitória. “Muitas não acreditam, já desistiram de lutar. Esse território me ensinou a ser mais aguerrida, a ter mais coragem. Porque aqui, se você não enfrenta, você é engolida.”
A ativista conta que, para fazer o movimento crescer, foi preciso criar redes próprias. Ela começou a se conectar com outras mulheres negras, travestis e pessoas LGBTQIA+, tentando construir o movimento. Os encontros começaram pequenos, com conversas em casa, no quintal.
“A gente ia falando umas com as outras, trocando experiências. Aos poucos, a rede começou a crescer. O mais difícil é convencer as pessoas de que vale a pena. Muitas vezes, elas estão cansadas, exaustas de enfrentar racismo, transfobia e machismo todos os dias. Então a gente precisava mostrar que a Marcha não era só um evento, era uma estratégia de existência.”
A cada encontro, a cada conversa, as mulheres conseguiam mobilizar mais participantes da região. Uma das grandes conquistas foi envolver mulheres de comunidades e cidades pequenas, fazendo com que sentissem que suas vozes importam.
Bruna alerta para a importância de ampliar as vozes, dando alcance às diferentes demandas: “Principalmente as mais invisibilizadas: as travestis negras, as periféricas, as que nunca foram ouvidas. Isso fortalece a nossa ação e dá sentido real à Marcha.”
Outra estratégia utilizada foi criar parcerias com organizações locais e movimentos sociais que já tinham experiência, mas que muitas vezes não incluíam a perspectiva de mulheres negras LBT. “A gente mostrou que é possível trabalhar juntas, respeitando a identidade e a vivência de cada uma.”
A articulação também abriu espaço para que mulheres da região assumissem posições de liderança na coordenação de oficinas, rodas de conversa e ações de mobilização, fortalecendo não apenas a Marcha, mas todo o movimento de mulheres negras no Sul. Entre diferentes caminhos até Brasília, ela coloca a solidariedade como ponto central.
“Resistir é preciso: resistir ao preconceito, à invisibilidade e às dificuldades estruturais. Cada passo que damos, cada mulher que se envolve, cada comunidade que se mobiliza, é um passo para transformar a realidade e mostrar a potência das mulheres negras”, finaliza.
*Este texto faz parte da série Mulheres que Marcham: o voo perene das mulheres negras por Reparação e Bem Viver, que tem como objetivo apresentar oito mulheres negras que, em movimento contínuo, impulsionam a 2ª Marcha das Mulheres Negras.