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Memórias indóceis de Ivannide Santa Bárbara semeiam o retorno a Brasília para a 2ª Marcha das Mulheres Negras

Aos 75 anos, a militante baiana revisita sua trajetória entre travessias pessoais, partidos, movimentos sociais e feminismos, reafirmando o papel das marchas como estratégia de luta do povo negro
Imagem: Afirmativa

Por Andressa Franco e Karla Souza

Indócil, lúcida, combativa e incansável. Essa é Ivannide Santa Bárbara, militante histórica da Bahia. Sua trajetória perpassa a política institucional, passando pela academia e chegando aos movimentos sociais, sempre atravessada pela luta das mulheres negras.

Filha adotiva de uma trabalhadora doméstica e de um motorista de estrada, Ivannide cresceu entre deslocamentos e precariedades, mas cercada pelo amor e pelo rigor da mãe, Maria do Carmo. O silêncio sobre sua origem biológica, mantido como estratégia de proteção, a acompanhou por décadas. Ainda criança, estudou enquanto ajudava a mãe em pequenos trabalhos de sobrevivência, vivendo em um quartinho de garagem transformado em lar. Essa experiência de pobreza atravessou sua formação, e foi a insistência da mãe que possibilitou que Ivannide seguisse nos estudos, o que lhe deu condições de aprovar-se em todos os concursos públicos que prestou ao longo da vida.

Hoje, com 75 anos, a baiana de Feira de Santana conta que sempre sentiu os efeitos do racismo em sua vida, mas foi apenas para lá dos 30 que nomeou essa experiência no reconhecimento de si como mulher negra. “O povo me chamava de morena escura e eu aceitava. Na favela hoje, o povo preto têm consciência de que é preto. Mesmo com certa dificuldade. Imagine no meu tempo, isso não passava pela cabeça da gente”, lembra.

Foi apenas quando começou a cursar economia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) – instituição em que, anos mais tarde, se tornaria a primeira pessoa negra a receber o título de Doutora Honoris Causa -, aos 31 anos e grávida da filha caçula, que Ivannide fez seus primeiros contatos com o debate racial. A ativista já era bem posicionada quanto à luta de classes, com a qual passou a se envolver durante os anos em que trabalhou em Irecê (BA), e começou a ouvir falar sobre a ditadura militar e as opressões de classe. Nesse mesmo período, início da década de 1980, ela se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT).

“Eu ouvia falar de racismo dentro da universidade, mas quando eu chegava no PT, estava o pessoal: ‘não, porque a coisa está preta.’ Aquilo começou a me incomodar e eu comecei a brigar dentro do partido.”

Imagem: Reprodução Redes Sociais

Apesar de todos os embates, em 1988, o partido apontou o nome de Ivannide para compor a chapa como candidata a vice-prefeita na princesa do sertão, alcunha da cidade. No entanto, se deparou com a resistência do grupo político do candidato a prefeito Jaime Cunha, que não aceitou ter o rosto da militante junto ao dele nos cartazes. Foi quando a voz de outra mulher negra se levantou durante a reunião do diretório: “Ou vocês colocam o nome dela no cartaz, ou eu venho com a negrada toda aqui para a porta chamar grito de ordem que o PT é racista.”

“Aquilo foi como uma martelada na minha cabeça, eu disse: ‘ah, isso é racismo mesmo’”, conta. Foi assim que ela, que já havia sido seduzida pela luta de classes, passou a ter clareza de que apenas esse debate não basta para a população negra. “Hoje eu sei que se a gente conseguisse vencer o capitalismo, não estaríamos livres do racismo.”

Envolvida até o pescoço

Não teve mais volta. Uma vez que havia despertado para a luta do movimento negro, Ivannide mergulhou cada vez mais fundo. Nesse processo, conheceu o Movimento Negro de Libertação, participou da fundação da Frente Negra Feirense (FRENEF), e foi decisiva no processo de consolidar a relação da Frente com o Movimento Negro Unificado (MNU). Aprendeu, divergiu e amadureceu.

Nesses anos que se passaram, presidiu o PT em Feira de Santana por alguns mandatos, e passou a tentar levar a discussão racial para dentro do partido de forma mais organizada.

“Mas o pessoal do meu grupo político, radicalizado pela luta de classes, disse que não valia a pena, porque aquilo só dividia a luta dos trabalhadores, que não dava para a gente discutir ‘particularidades’”. Depois de três anos lutando para se fazer ouvir, Ivannide rompeu com o grupo, e passou a se articular com um coletivo de militantes negros dentro do partido.

Aquele foi apenas o primeiro dos seus rompimentos. Não demorou para que ela também entendesse que, no movimento negro, ela era mulher, e no movimento feminista, ela era negra. “As lideranças nacionais do PT consideravam que havia o movimento de mulheres do PT, não era necessário dizer se era branca, negra ou indígena”, critica.

Mas foi em um congresso de mulheres realizado pela sigla que ficou evidente que não era bem assim. As mulheres negras provocaram: onde estavam suas iguais naquela época [década de 1980]? “A grande maioria era trabalhadora doméstica. E onde estavam as mulheres brancas? Dirigindo o partido, médicas, advogadas. Fomos apontando nossas diferenças, e rachamos.”

Nesse mesmo período, outra ruptura acontecia: a do Grupo de Mulheres do MNU (GM-MNU) com o próprio movimento. “As mulheres do GM eram retadas, preparadas, intelectualizadas. Elas romperam, acabaram com o GM e saíram do MNU. E eu fui ficando nesse meio.”

Imagem: Acervo Pessoal

E foi ficando também por Salvador (BA), já aposentada, passou a atuar como assessora do então deputado federal Luiz Alberto. Na capital baiana, conheceu ainda mais o movimento de mulheres negras. “Comecei a ver essas diferenças dentro da pirâmide social, onde a gente está cá embaixo. Portanto, quando surgiu a ideia da Marcha das Mulheres Negras de 2015, eu já estava envolvida até o pescoço.”

Com uma memória prodigiosa, ela recorda da mobilização do Portal do Sertão – território formado por Feira de Santana e outros 16 municípios – para chegar até Brasília (DF), realizando formações sobre racismo e Bem Viver.

“Foi muito lindo ver aquela avenida inteira de mulher preta. Em cima do trio, mulheres dotadas de uma oratória concreta, denunciando todo tipo de injustiça. E além das denúncias: as exigências que temos para que esses governos cumpram o papel de estadistas em relação ao país inteiro, e não só para metade, como eles fazem.”

Portal do Sertão em marcha por Reparação e Bem Viver

Sobrevivente de um infarto e muitas vezes se locomovendo com apoio de uma cadeira de rodas, hoje Ivannide deixa a dianteira da luta para as mais jovens. Sua filha, Urânia Santa Bárbara, segue seus passos, tanto na disputa pela política institucional, como no movimento de mulheres negras.

Observando um tanto de longe, entre conversas com sua caçula, a ativista estava preocupada que a mobilização no território dispersasse. Mas o Julho das Pretas de 2025 lhe deu novo vigor de otimismo. “As companheiras começaram a acionar um veículo de comunicação de extremo poder na nossa região: as rádios. Os programas estão noticiando, muitas entrevistas e aí eu fiquei animada, penso que vai dar um bom público da nossa região.”

Para Ivannide, uma década depois, as estratégias para mobilizar as mulheres negras para marchar em Brasília ganhou um poderoso reforço, que se não usado com sabedoria também pode se transformar em importante fragilidade: as redes sociais.

“As redes sociais não são acessíveis para qualquer mulher. Mulheres rurais, pobres, que não tiveram acesso à educação, usam o WhatsApp e olhe lá. Há 10 anos, a gente saía daqui, ia para Matinha, São José, um monte de lugar. Hoje, a gente confia nas redes sociais, e manda mensagem.”

A feirense é grande entusiasta das marchas como tática histórica do povo negro. “Bem Viver vai acontecer no dia em que todos os nossos pares tiverem vida digna. Para que isso aconteça, a gente tem que mostrar poder. E a forma de mostrar poder ainda é botando a cara na rua. Ver 1 milhão de mulheres negras acampadas em Brasília, reivindicando Reparação e Bem Viver, assusta.”

Na torcida para que esse discurso encante meninas e mulheres negras Brasil e mundo afora, a própria Ivannide não será uma das “caras na rua” na capital federal no dia 25 de novembro. Com as dificuldades de locomoção, assistirá o momento histórico de casa, mas tranquila, e certa de que será bem representada.

Ivannide Santa Bárbara em trecho do documentário “Enquanto Meu Coração Bater”, que está em produção e irá contar sua história / Imagem: Divulgação

“Fico feliz de ver vocês, jovens, se interessando. Eu quero que briguem, que peçam licença de trabalho, que deem jeito de ir, porque vai ficar na memória de vocês enquanto viverem. Eu tenho fé, e tenho pedido a Iansã que vente o vento da fortuna, da valentia, e traga para essas mulheres todas a necessidade de guerrear por direitos.”

Integrante do Grupo de Trabalho de Metodologia, Estrutura e Finanças do Comitê Portal do Sertão, Tânia Márcia destaca os desafios enfrentados na captação de recursos para viabilizar a ida à Brasília. Ela aponta que a dificuldade é compartilhada por outros comitês do estado, mas ressalta que a articulação regional tem buscado alternativas criativas e solidárias para garantir a participação.

“Estamos nos mobilizando para conseguir recursos, pelo poder público, a exemplo de secretarias e vereadores, buscando apoio também das universidades, organizações e sindicatos. Será realizado um caruru promovido pela UEFS e a segunda edição do ‘Feijão das Pretas’, além da venda de camisas da marcha, para angariar fundos para nosso comitê.”

As ações, segundo Tânia, têm um objetivo central: assegurar que as mulheres negras do Portal do Sertão não apenas cheguem à capital federal, mas que também retornem com dignidade, saúde e segurança para suas comunidades. 

Expectativas pós-marcha: mobilização e consciência histórica

Com a experiência de mais de quatro décadas na luta política e no movimento de mulheres negras, Ivannide reflete sobre os efeitos da Marcha para além do dia 25 de novembro. Para ela, o impacto imediato não é o mais importante, mas sim o que permanece nas vidas das mulheres que marcham e voltam transformadas para seus territórios.

“Pra mim, o maior ganho é entre nós, é nos mobilizarmos. Essas mulheres que irão encher os ônibus e aviões daqui para Brasília nunca mais serão as mesmas, principalmente aquelas que não estão acostumadas ao movimento”, declara.

Imagem: Acervo Pessoal

A militante acredita que a mobilização fortalece a consciência histórica coletiva, que garante avanços. Segundo ela, conquistas como as cotas raciais são exemplos de resultados concretos de processos de luta que, mesmo recebidos com resistência, ampliaram direitos e transformaram realidades. Ao mesmo tempo, Santa Bárbara ressalta que a marcha não deve ser entendida como um ponto de chegada, mas como parte de uma caminhada longa, sustentada por gerações. 

Para a ativista, o sentido está em manter viva a memória de quem lutou antes, alimentar a força das que estão agora e preparar o terreno para aquelas que virão. É nessa continuidade que reside a possibilidade de alcançar o Bem Viver como horizonte coletivo que move e dá direção à luta das mulheres negras no Brasil.

*Este texto faz parte da série Mulheres que Marcham: o voo perene das mulheres negras por Reparação e Bem Viver, que tem como objetivo apresentar oito mulheres negras que, em movimento contínuo, impulsionam a 2ª Marcha das Mulheres Negras. 

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