“Não deveríamos precisar de leis para o reconhecimento do que está na Constituição”, diz Mãe Jaciara sobre racismo religioso

O presidente Lula sancionou lei que equipara os crimes de injúria racial aos de racismo, aumentando a pena para quem praticar intolerância religiosa. Os diversos mecanismos jurídicos, no entanto, não refletem em punição

Por Andressa Franco, Daiane Oliveira e Patrícia Rosa

Imagem: Sérgio Silva

Os povos de religiões de matriz africana realizam neste sábado (21) um ato pela liberdade religiosa, no busto de Mãe Gilda, na Lagoa do Abaeté, em Salvador (BA). O ato marca o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, data instituída depois da morte da Ialorixá, vítima do racismo religioso.

A então sacerdotisa do Ilê Axé Abassá de Ogum morreu há 23 anos, após ter seus problemas de saúde agravados por ataques verbais e físicos dentro de seu próprio terreiro, realizados por membros da Igreja Evangélica Assembleia de Deus.

Uma pesquisa realizada pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) e pela entidade Ilê Omolu Oxum, aponta que 78,4% de pais e mães de santo brasileiros já foram alvo de racismo religioso. A atual ialorixá do Ilê Axé Abassá de Ogum e filha biológica de Mãe Gilda, Mãe Jaciara, vem enfrentando o racismo religioso cotidiano, refletido inclusive em ataques ao busto de Mãe Gilda.

A prática atinge outros monumentos de homenagem, como a estátua de Mãe Stella de Oxóssi, incendiada de forma criminosa em dezembro de 2022, também em Salvador. E vai além, com atos de vandalismo contra terreiros por todo o país, como aconteceu com o Terreiro Casa de Xangô, em Vitória da Conquista (BA), na madrugada do último dia 31 de dezembro.

“O ato é importante para denunciar ao poder público. Temos dados que indicam o avanço do racismo, do terrorismo e do vandalismo nos terreiros de Candomblé. A gente vai às redes sociais, procura a mídia e depois fica silenciado”, critica Mãe Jaciara.

“Nós já temos muitas leis criadas”

Na teoria da legislação brasileira, não falta amparo ao povo de santo. Na prática, a realidade é outra. No dia 11 de janeiro, foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mais uma. O PL 4566 equipara os crimes de injúria racial aos de racismo, tornando inafiançável e imprescritível. Além disso, aumenta a pena para quem praticar racismo religioso, de 2 a 5 anos.

Outro ato do presidente foi a Lei 14.519, que instituiu o dia 21 de março como o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações de Candomblé.

“Nós já temos muitas leis criadas”, avalia Mãe Jaciara. “Acredito que não deveríamos precisar de leis para o reconhecimento do direito que está na Constituição. Juntando essas datas, poderíamos construir políticas públicas para um processo de acabar com essa violência.”

Para a advogada Mariane Oliveira, a lei promove um importante avanço ao equiparar o crime de injúria racial ao crime de racismo, uma vez que o crime de injúria racial era utilizado como cortina de fumaça para não punir devidamente as ações racistas.

Mariane Oliveira – Advogada e Presidente da Comissão da Igualdade Racial da OAB- FSA / Imagem: Arquivo Pessoal

“A Lei 14.532 não apenas aumenta a pena quando o crime for cometido em contexto religioso, mas dá ênfase à penalização de ‘quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas’”, destaca a Presidente da Comissão da Igualdade Racial da OAB de Feira de Santana (BA).

Apesar de reconhecer os avanços, Mariane observa que é importante que haja efetiva aplicação do texto da lei. Além do devido acompanhamento por parte da defesa. Pontua ainda a capacitação dos agentes públicos para lidar com seriedade diante dos casos de intolerância religiosa e garantir a devida penalização.

Linha do Tempo

Inicialmente as religiões de matriz africana foram criminalizadas no Brasil. Posteriormente, e devido a luta dos povos de terreiro, a legislação de combate ao racismo religioso e liberdade de culto passam por uma evolução ao longo dos anos.

  • 1940 – Artigo 284 do Código Penal criminaliza práticas de curandeirismo e outros ritos, associados e presentes nas religiões de matriz africana.
  • 1976 – Decreto libera as casas de candomblé da obtenção de licença e do pagamento de taxas à delegacia de Jogos e Costumes. A quarta Iyálorixá do Terreiro do Gantois, Mãe Menininha do Gantois, foi uma das principais articuladoras do término das restrições a cultos impostas pela Lei, que condicionava a realização de rituais à autorização policial e limitava o horário de término dos rituais às 22 horas.
  • 1988 – A Constituição Federal estabelece que o Estado Brasileiro é laico e prevê que a liberdade de exercício de religião como um direito fundamental.
  • 1997 – A Lei 9.459, em seu artigo 20, define como crime: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião”.
  • 2000 – Morre Mãe Gilda.
  • 2007 – Instituído o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa por meio da Lei, em homenagem a Mãe Gilda. 
  • 2011 – Rio de Janeiro cria primeira Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi).
  • 2018 – Ministério Público da Bahia lança o aplicativo ‘Mapa do Racismo e da Intolerância Religiosa’, para registro de casos de racismo e intolerância religiosa.
  • 2018 – Morre Mãe Stella de Oxóssi, a quinta yalorixá a liderar o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, criado em 1910. Mãe Stella condenava o sincretismo religioso; montou o primeiro museu aberto em uma casa de candomblé na Bahia.
  • 2019 – STF decide que é constitucional o sacrifício de animais em cultos religiosos de matriz africana.
  • 2019 – Aprovado Estatuto Municipal da Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa em Salvador (BA).
  • 2019 – Aumentam em 56% os casos de intolerância religiosa no Brasil, sendo 61% destes ataques a religiões de matriz africana
  • 2020 – 20 anos depois da morte de Mãe Gilda, o busto da Ialorixá é alvo de vandalismo.
  • 2022 – O serviço 1746 da Prefeitura do Rio de Janeiro passa a ter canal exclusivo para receber denúncias de preconceito religioso e étnico-racial.
  • 2022 – Colóquio Nacional Itinerante viaja pelo Brasil para discutir o Projeto de Lei 1.279 (PL Makota Valdina). Ele estabelece políticas públicas e adota ações para sobrevivência e manutenção da cultura aos povos tradicionais de matrizes africanas.
  • 2022 – Escultura de Mãe Stella de Oxóssi é incendiada em Salvador.
  • 2022 – Cresce em 45% os ataques por racismo religioso em relação aos dois anos anteriores.
  • 2023 – Sancionada Lei 14.519 que institui o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações de Candomblé.
Mecanismos jurídicos não refletem em punição

Nos últimos anos mecanismos jurídicos foram criados. O que não necessariamente é refletido em punição para os crimes previstos em lei.

Para se ter uma noção, a primeira condenação por racismo religioso na Bahia só aconteceu em junho de 2021. Isso seis anos depois de o caso ser denunciado pelo Ministério Público do estado. A denunciada foi Edneide Santos de Jesus, condenada em segunda instância no Tribunal de Justiça da Bahia. Ela foi acusada por discriminação religiosa contra a ialorixá Mildredes Dias Ferreira, Mãe de Santo do Terreiro Oyá Denã, que morreu em 2015 de infarto. Assim como Mãe Gilda, teve problemas de saúde agravados por conta dos ataques. A pena recebida? Prestação de serviços à comunidade e se apresentar mensalmente à Justiça.

Em entrevista para a Afirmativa, a advogada Camila Garcez explica que pouquíssimos casos chegam às instâncias formais de poder. Isso porque os integrantes do sistema de justiça perpetuam a secundarização de raça, religião, gênero, geração, variáveis que considera norteadoras das opressões cotidianas que se impõem, sobretudo, às pessoas negras.

“Nós temos diversas frentes de praticantes da religião que envidam esforços para que esses casos não caiam no esquecimento, mas até que ponto temos o apoio do sistema de justiça?”, questiona. A sub-representação de pessoas negras, tanto no judiciário brasileiro, como em cargos do executivo e legislativo também configuram um fator relevante. Camila defende que as ocorrências sejam formalizadas por meio de notícias crimes nas delegacias, que o Ministério Público seja notificado.

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