Por Ana Luíza Teixeira Nazário e João Pablo Trabuco de Oliveira
“O que temos em comum é o pó do qual somos feitos. É o pó que nos faz, mais nada. Mas o meu pó corre mais perigo. Meu pó vira cinza rápido.
Quem incendeia?”
Conceição Evaristo
Saravá, Pretos Velhos! Que da sabedoria da (sobre)vivência preta nos dizem: fio, estuda e trabaia pra ser dotô. Arruda e guiné. Ser dotô era o que João Pedro de 14 anos queria… PRETérito imperfeito.
“A morte incendeia a vida, como se essa estopa fosse”
O racismo nos incendeia todos os dias. Uma vez que outra só abrasa a pele preta, deixa certo ardor que incomoda, mas “nosso povo é forte” e “estamos acostumados” – eles dizem. Quando o fogo dos racistas queima os nossos por completo, sem deixar ao menos pó, assistimos mais um virar fagulha da grande fogueira. Naturaliza-se que a corporeidade negra seja reduzida à palha para a combustão que dá energia ao maquinário da branquitude.
E por falar em branquitude, tem gente branKKKa comemorando o fogo dos Estados Unidos. Incomoda ver as redes sociais dessas pessoas porque para elas a sensibilidade morre ali, enquanto a gente morre asfixiado no asfalto. Morre na quebrada também, mas o assassino é o mesmo. A gente morre com 71 tiros dentro de casa (tentem inverter a ordem desse número, eis a química rs). E, como canta Elza Soares, não é bala perdida… Pra gente é bala autografada!
75% das vítimas de homicídio no Brasil são pessoas negras, segundo o Atlas da Violência (IPEA, 2019). E a vitimação negra não seria diferente no atual contexto de pandemia, o que se confirma através de estudos do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), demonstrando que o risco de uma pessoa negra morrer por Coronavírus é sempre maior que o de uma branca, seja qual for o recorte aplicado.
Entendam: a morte é onipresente na vida negra. Ela tá sempre nos rondando, mas não tem cara de caveira. Caveira… Caveirão! Essa é a carruagem dela, que chega sem bater na porta ou pedir licença, mete o pé no trinco e dilacera não só a madeira da porta… A maldita nem mesmo no tal “isolamento social” nos livra do destino que o algoz branco a mandou executar. Execução! Tá aí a especialidade desses desgraçados há 520 anos.
“Registre-se. Publique-se. Intime-se. Mais uma sentença de morte”. O crime? Tá na cara… O delito de ser negro.
Você quer falar de estadounidenses, branco? Prestenção: João Pedros, João Vítors, Agathas, Marielles, Amarildos e Claudias… do you want to speak in english? Salve Racionais, que já dizem há quase duas décadas que “playboy bom é chinês e australiano / Fala feio, mora longe e não me chama de mano”.
– E aí, brother! Hey, uhuuul! Pau no seu…
Da ponte pra cá a gente fala pretoguês, pô, e estamos morrendo em português. Olha! Da janela do seu apartamento não dá pra ver? A tela do MacBook atrapalha a visão ou é melhor “militar” nas redes para se solidarizar? E você ainda ganha likes, não é? Como é estar na posição de Jesus salvador, diga aí, é tão bom quanto parece?
O silenciamento operado há séculos pelo racismo nos faz duvidar da nossa capacidade de revolta, do poder ancestral que nos conduz não só à resistência, mas também à rebelião. Enquanto nos limitamos a necrolikes emocionados, a KKK da terra brasilis – sem capuz, ela não precisa esconder o rosto – nos amarra em postes, nos açoita dentro da sala de segurança do mercado e com sua viatura nos arrasta pelo asfalto.
O que muitos/as irmãos e irmãs negras ainda não perceberam é que a branquitude faz isso pra domesticar mesmo. Eles querem que a gente ocupe uma ou duas cadeiras na Universidade, fale como eles e ande com aquela gente deles que em nada se parece com a nossa e se porte como eles porque assim fica mais fácil aniquilar a gente. E isso quem falou primeiro não fomos nós, foi o Abdias Nascimento, preto véio, das antigas.
Insurreição…
Quando esse povo branco se comove com os Estados Unidos imperialista da América é porque falando deles lá não dá pra mexer com os privilégios deles daqui (e ainda aparece na frente das câmeras como bom moço, né, sinhô/á?). Aqui qualquer coletivo que vai pra rua tá fazendo baderna e bom, daí é “caso de polícia”. Liga 190 pro navio negrer… digo, camburão!
Por aqui, tupiniquins, a gente acha que é todo mundo igual. E tem branco se pintando de preto e achando que é negro porque fica mais fácil aparecer no jornal. A ideia é individualizar. É conhecer um negro médico, outro engenheiro, outro patrão, ou seja, se um negro conseguiu subir na vida, vocês também conseguem. Parem de vitimismo…
Brazil não é Estados Unidos, aqui Casa Grande&Senzala vivem em harmonia, né? Quer dizer, o “viver” e a “harmonia” ficam pra eles, pra gente sobra… 80 tiros de fuzil. Essa maledicência também não foi criada por qualquer pessoa, foi Lélia Gonzalez que avisou…
“Mas faz muito tempo” que tá na hora de convocar de Malês a Ogum, de Tereza de Benguela à Oyá, de Marighella e João Cândido a Xangô pra formar a linha de frente de uma grande chama por Cláudias, Amarildos, Agathas e João Pedros. Olho de tigre!
“A gente combinamos de não morrer!”
Na despedida já vamos agilizando e lançamos pro teu provável questionamento outra indagação: e já não estamos morrendo?
Irmão, irmã: não dá pra gastar saliva, não. Ninguém sabe até hoje como o candeeiro [da vovó] desapareceu. Vamos achá-lo e por pra queimar.
Salvador, Bahia,30 de maio de 2020.