Por Andressa Franco
O ano de 2023 foi marcado pela persistência da violência contra os povos indígenas, ataques a direitos e poucos avanços na demarcação de terras. É o que mostra o ‘Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2023’, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), divulgado na última segunda-feira (22).
O Relatório, organizado em três capítulos e 19 categorias de análise, apresenta um retrato das diversas violações praticadas contra os povos indígenas em todo o país.
São três as categorias principais listadas pelo levantamento: violência contra a pessoa, que somou 411 registros, cinco a menos do que em 2022; violência contra o patrimônio, que registrou 1.276 casos, também apresentando uma ligeira queda em relação ao ano anterior, quando foram contabilizados 1.334; e violência por omissão do poder público, que representam a maioria dos registros: 1.564.
Cresce o número de mortes de crianças indígenas
Nesse último caso (violência por omissão do poder público), as mortes de crianças indígenas de até quatro anos em 2023 representam os dados mais expressivos. Foram 1.040 registros, um aumento significativo em relação a 2022, quando foram contabilizados 835 casos. As violências por omissão do poder público também são refletidas nos casos de suicídios (180), mortes por desassistência à saúde (111), desassistência na área de educação (61) e desassistência geral (66).
Chama atenção ainda o número de assassinatos (208), tentativas de assassinato (35), violência sexual contra indígenas (23), lesões corporais (18) e ameaça de morte (17). O levantamento ressalta a relação entre a violência contra os indígenas e os conflitos territoriais envolvendo interesses econômicos sobre suas terras.
Assassinatos
Especificamente sobre os assassinatos, os dados foram obtidos pelo Cimi junto ao Sistema de Informação Sobre Mortalidade (SIM) e à Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). Continuaram liderando o ranking os estados de Roraima (47), Mato Grosso do Sul (43) e Amazonas (36), representando 39% do total. A Bahia aparece na sexta posição, com sete assassinatos, e a maioria das vítimas eram jovens.
Com base em informações obtidas pelas equipes missionárias e em notícias publicadas em meios de comunicação, o Cimi faz também seu próprio levantamento, que contabilizou 88 indígenas assassinados. Nesses dados, a Bahia é o segundo estado com mais assassinatos (18), atrás apenas do Mato Grosso do Sul (19).
Cenário na Bahia
De acordo com o relatório, foram registrados 150 casos de conflitos relacionados a direitos territoriais em 2023, que ocorreram em pelo menos 124 terras e territórios indígenas em 24 estados do país.
A maioria dos registros envolve comunidades em contexto de luta pela terra, em muitos casos há vários anos. “Muitos destes conflitos envolveram pressão, assédio e intimidações, e alguns deles chegaram a resultar em ataques armados e violência direta contra comunidades indígenas”, acrescenta o documento.
A Bahia aparece na sexta colocação em número desses conflitos, com 10 casos, sendo seis deles em terras do povo Pataxó. Os povos Tuxá, Truka Tupã, Kiriri e Pankararu figuram com um conflito cada.
O relatório do Cimi lembrou por diversas vezes do caso dos dois jovens Pataxó assassinados a tiros em janeiro de 2023: Samuel Cristiano do Amor Divino, de 23 anos, e Nauí Brito de Jesus, de 16. O crime aconteceu no extremo Sul da Bahia, na região onde está localizada a TI Barra Velha. Há evidências de que a aldeia de Barra Velha existe há quase dois séculos e meio. Mas há anos os Pataxó lutam pela conclusão da demarcação de suas terras, o que vai na contramão dos interesses da agroindústria de celulose, da pecuária, e do setor turístico.
“Cansados de esperar por providências do Estado e sem espaço para praticar seu modo de vida tradicional, deram início a um movimento de retomada e autodemarcação de seus territórios, entre 2022 e 2023. A reação de fazendeiros e latifundiários da região foi de extrema violência”, explica o relatório. O ataque contra Samuel e Nauí aconteceu 11 dias depois de iniciada a retomada de duas fazendas: Condessa e Veneza.
Eles foram assassinados na rodovia BR-101, onde haviam ido comprar alimentos para a retomada onde viviam, na TI Barra Velha do Monte Pascoal. Entre 2022 e 2023, quatro policiais militares foram acusados tanto pela morte dos dois jovens, como pelo homicídio de Gustavo Pataxó, de 14 anos, morto em um ataque em setembro de 2022 na TI Comexatibá. Um mês antes de ser assassinado, Gustavo postou uma foto nas redes sociais com um cartaz escrito “Povo Pataxó pede socorro”.
O envolvimento de agentes da PM nas milícias rurais que atuam na região tem sido denunciado com frequência pelos Pataxó, que solicitaram ao governo federal a presença da Força Nacional de Segurança Pública na região. Sob mandato do primeiro governador da Bahia autodeclarado indígena, Jerônimo Rodrigues (PT), o pedido não foi atendido, e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) chegou a emitir medidas cautelares em favor do povo, considerado pelo organismo em “situação de grave e urgente risco de dano irreparável aos seus direitos”.
O grupo ruralista intitulado “Invasão Zero” também foi mencionado pelo relatório do Cimi. O movimento ganhou notoriedade pelo incentivo a ações violentas contra indígenas e movimentos sociais do campo, especialmente no ataque que tirou a vida da Pajé Nega Pataxó em janeiro deste ano.
Governo Lula 3
O ano de 2023 iniciou com grandes expectativas em relação à política indigenista do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Depois de quatro anos de um presidente que cumpriu a promessa de não demarcar nenhum centímetro de terra indígena, o terceiro mandato de governo do presidente Lula, que subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado pelo cacique Raoni e cumpriu a promessa de criar o inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI), gerou grandes expectativas em relação à política indigenista. No entanto, o documento publicado pelo Cimi revela que o primeiro ano da nova gestão federal foi marcado pela retomada de ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas, mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram insuficientes.
Das 14 terras cuja homologação foi prometida em 2023, apenas oito foram homologadas no primeiro ano do novo governo, um número classificado pelo Cimi como aquém das expectativas. A publicação também critica a “disposição do governo federal em explorar petróleo na foz do Amazonas, a priorização orçamentária ao agronegócio e o apoio a grandes projetos de infraestrutura e de exploração minerária em conflito com povos indígenas, como a ferrovia “Ferrogrão” e as investidas de empresas estrangeiras sobre o território Mura, no Amazonas.”
O quadro é agravado pela atuação do Congresso Nacional, que se mobilizou para esvaziar o MPI e para aprovar o Marco Temporal, medida considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A tese pretende impor que os indígenas só tenham direito a demarcar terras nas quais já estivessem estabelecidos antes da data de promulgação da Constituição de 1988. Desconsiderando a decisão do STF e superando as tentativas de veto parcial de Lula, o Congresso Nacional aprovou no final de 2023 a inclusão do critério na Lei 14.701/2023O relatório conclui que 2023 foi um ano melhor que os últimos no que tange à implementação de políticas públicas voltadas aos povos indígenas. No entanto, a análise orçamentária mostra que há muitos gargalos a serem enfrentados. Acesse o documento completo aqui.