OPINIÃO: O Estado laico é uma benção

A recém findada campanha eleitoral de 2022 foi marcada pelo sequestro da pauta política por setores fundamentalistas, sobretudo líderes de denominações evangélicas, apoiadores da candidatura de Jair Bolsonaro (PL).

Campo religioso impõe desafios ao governo Lula e a democracia brasileira em 2023

Por Iury Batistta*

Imagem: Arquivo/Agência Brasil

A recém findada campanha eleitoral de 2022 foi marcada pelo sequestro da pauta política por setores fundamentalistas, sobretudo líderes de denominações evangélicas, apoiadores da candidatura de Jair Bolsonaro (PL). Suplantando o debate em torno das ideias e planos de governo dos candidatos à Presidência da República, o que se viu foi um violento apelo ao voto evangélico, envolvendo acusações inverídicas graves contra o principal candidato de oposição, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – que viria a ser eleito presidente em segundo turno com 50,90% dos votos válidos.

O segundo turno das eleições mostrou-se mais explícito na mobilização de uma linguagem com referências cristãs, assumindo ares de “guerra espiritual” entre o “bem” e o “mal”. Diante da avalanche de desinformação e fake News produzidas pela campanha de Bolsonaro, o petista foi tragado ao lamaçal da pauta moralista bolsonarista, forçando sua campanha a dar sinais cada vez mais cristalinos à parcela evangélica de eleitores, culminando na “carta aos evangélicos” lida por Lula, em que ele se comprometia com o respeito à liberdade religiosa ao mesmo tempo em que criticava o uso político da fé.

Entre as acusações mais graves estava a que dizia que, uma vez eleito, o governo petista promoveria uma implacável perseguição religiosa contra os cristãos, que veriam seus templos e igrejas serem fechados – algo que o PT nunca fez em seus 14 anos de Governo Federal. Casos recentes de perseguição a lideranças religiosas católicas pelo regime de Daniel Ortega, presidente da Nicarágua e ex-guerrilheiro sandinista, foram reiteradamente explorados pela campanha de Bolsonaro como forma de atemorizar esse segmento do eleitorado e alertá-lo sobre os supostos perigos da assunção de um governo democrático.

Não é de se ignorar que, nos últimos anos, o Brasil vem observando um forte movimento de transição religiosa. O segmento evangélico vem alterando consideravelmente essa paisagem, ganhando cada vez mais capilaridade na sociedade. De acordo com dados de 2020 do Datafolha, os evangélicos representam 31% da população e, consoante projeções de especialistas, esse número chegará a mais da metade dos brasileiros em dez anos, desbancando a histórica primazia católica (hoje representando 50% da população). Aliás, é justamente sobre os católicos que o campo evangélico mais avança. Portanto, dialogar com esse público amplo é tarefa fundamental para qualquer governo.

Apesar do espaço cada vez maior que as igrejas evangélicas vêm ganhando no país, não só em termos de adeptos como também de presença nos âmbitos do poder político e institucional – com uma bancada de deputados federais específica -, lideranças de perfil midiático costumam propalar entre sua membresia a tese de que no Brasil opera o que denominam de “cristofobia”, ou seja, uma espécie de discriminação organizada e articulada por parte de setores progressistas da sociedade em relação a essa parcela da população e aos valores que comungam.

A comunidade evangélica, como qualquer outra comunidade religiosa, possui o direito de denunciar junto ao poder público casos e situações de intolerância religiosa, isto é, em que há cerceamento ou desrespeito ao exercício de sua fé, cabendo ao Estado brasileiro, por intermédio de suas instituições, dar guarida às acusações e garantir sua proteção, tendo em vista que esse é o cerne da ideia de Estado laico.

Entretanto, ao se observar os dados sobre violência religiosa percebe-se que o discurso da cristofobia não encontra qualquer respaldo na realidade. O Disque 100, serviço disponível à sociedade brasileira para a denúncia de violações dos direitos humanos, revela que os principais alvos da intolerância religiosa no país são, em verdade, as religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, e os seus adeptos.

São essas religiões – que têm baixa representatividade política na arena institucional – que experimentam uma forma de intolerância mais aguda, visto que se articula com o racismo imperante no Brasil, conformando o fenômeno do racismo religioso. Tão perenes como as práticas religiosas dos africanos escravizados no Brasil são as ameaças que elas sofrem desde suas origens: ontem pelo Estado e a Igreja Católica, hoje por denominações neopentecostais.

A politização da questão religiosa no Brasil pelo governo de Jair Bolsonaro borrou as fronteiras entre política e religião e acirrou os conflitos em torno dos sentidos do Estado laico, conformando um grande desafio para o próximo governo. No cerne dessa tensão está um conjunto de pautas relativas a direitos humanos (modelos diversos de família, aborto, drogas, sexualidade), encarada por setores conservadores de católicos e evangélicos como temas inegociáveis, travando o debate sobre temas sensíveis à sociedade em nome de uma posição maniqueísta nociva à própria democracia.

Apesar das dificuldades impostas, o governo eleito do presidente Lula terá que abrir o diálogo político com os evangélicos a partir das brechas que esse segmento heterogêneo oferece, de modo que a temática não se restrinja à manipulação feita por pastores fundamentalistas.

Embora as eleições de 2022 tenham demonstrado um cenário de consolidação de uma direita cristã, a virada no tabuleiro político nacional já provocou mudanças no comportamento de figuras evangélicas proeminentes que apoiaram abertamente Bolsonaro e ajudaram a demonizar a imagem de Lula e do PT. Lideranças como o pastor Silas Malafaia e o bispo Edir Macedo estiveram ao lado de Lula em seus dois primeiros governos e são muito hábeis politicamente em modular seus discursos de maneira a não se afastarem do centro do poder. Todavia, ao acenar para esse grupo, caberá ao novo governo manter uma postura altiva de modo a não capitular diante da agenda ultraconservadora.

Por outro lado, a ascensão de uma ala progressista evangélica que apoiou a candidatura de Lula e se expressou na eleição do pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) à Câmara dos Deputados abre um canal mais arejado de comunicação que precisará ser fortalecido.

A partir de 2023, teremos um governo com uma capacidade maior de escuta aos movimentos que atuam em defesa dos direitos humanos, nesse sentido, e diante do quadro de violações, será preciso haver demonstrações mais sólidas no que se refere ao combate à intolerância contra as religiões afro-brasileiras.

Cabe dizer que a futura primeira-dama, a socióloga Janja, é adepta das religiões de matriz africana e pode ser uma importante aliada na defesa dessa tradição, sem que isso implique em qualquer tipo de preferência religiosa, como ela declarou em diversas oportunidades, diferente do que foi visto nos quatros anos de governo Bolsonaro em relação aos evangélicos.

Assim, o diálogo com evangélicos – assim como com indivíduos de outras confissões religiosas – precisa ser feito amparado nos princípios da laicidade do Estado brasileiro, na medida e na forma que seus princípios expressam, como a não interferência de correntes religiosas em assuntos estatais e de governo, apartando o púlpito da tribuna.

Este artigo integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

*Iury Batistta é pesquisador, mestre em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

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