Pernambuco um ano depois das chuvas: moradores e ativistas relatam abandono do poder públicoe falta de investimento em obras estruturais

Ativistas criticam o investimento de prefeitura e estado em comerciais e propagandas e a falta de diálogo com os coletivos

Ativistas criticam o investimento de prefeitura e estado em comerciais e propagandas e a falta de diálogo com os coletivos

Por Andressa Franco

Na manhã desta sexta-feira (26), familiares das vítimas das chuvas que deixaram mais de 100 mortos em Recife (PE) e municípios vizinhos em maio de 2022, se reuniram no Terminal Rodoviário de Jardim Monte Verde para um protesto em cobrança de medidas do poder público em apoio às famílias que vivem em áreas de risco.

O percurso dos manifestantes passou pelo local onde mais de 40 pessoas que moravam em uma área de barreira morreram após os deslizamentos. Na Rua Alto Santo Isabel, onde cinco pessoas morreram soterradas, apenas uma pequena parte da barreira foi cimentada. E com as recentes chuvas na região nesta semana, as ruas estão tomadas de lama.

Moradores e membros da Comissão Jardim Monteverde afirmaram ao Marco Zero Conteúdo que a prefeitura só mandou os agentes municipais para realizar a limpeza do local devido ao protesto.

Protesto dos familiares das vítimas das chuvas que deixaram mais de 100 mortos em Recife (PE) cobrando ações da gestão pública – Imagem: Marco Zero Conteúdo
A vida depois das chuvas

Um consenso entre as pernambucanas ouvidas pela Afirmativa durante as chuvas de 2022, era que aquela tragédia era resultado de um drama recorrente do estado. Resultado da falta de investimento em políticas de prevenção e obras estruturais. Apesar da repercussão, as mesmas ativistas relatam que nada mudou. Inclusive há o medo de uma tragédia nas mesmas proporções.

“Basta chover um pouco pra todo mundo se preocupar. Prova disso é a Frente pelo Clima instalada na Câmara do Recife, com parlamentares, movimento social e moradores pressionando para que as promessas dos governos sejam cumpridas”, afirma Larissa Santiago, coordenadora do Blogueiras Negras.

A coordenadora das Blogueiras Negras, Larissa Santiago, enfatiza que quase nada mudou em relação a 2022 – Imagem: (Elza Fiuza/Agência Brasil)

Apesar das chuvas este ano não estarem na mesma proporção, a memória está viva nas consequências. “Ainda ontem peguei um carro por aplicativo e o motorista, morador de Jaboatão dos Guararapes, contou que perdeu casa, móveis e até o carro. E ele não recebeu o auxílio do Governo do Estado”, conta Larrisa. Não que o auxílio fosse dar conta de reparar os danos, já que se tratou de uma única parcela de R$ 1.500,00. 

Nayara Fernandes também é moradora de Jaboatão, uma das regiões mais afetadas. Na época, seu bairro, o Engenho Velho, ficou sem acesso à energia, internet ou fornecimento de água. Foram quatro meses sem UPA (Unidade de Pronto Atendimento). Além disso, árvores e fios elétricos caíram, assim como a ponte que dá acesso a BR 101. Por fim, a Defesa Civil só conseguiu retirar os corpos soterrados no bairro depois de três dias.

“Continua uma situação de alerta”, declara Nayara. Na última quarta-feira (24), a Agência Pernambucana de Águas e Clima (Apac) elevou para o nível laranja, o alerta de chuvas para a Região Metropolitana do Recife e a Zona da Mata do Estado. “Nessas fortes chuvas aconteceu um mini deslizamento aqui em Jaboatão. Tem também o Rio Jaboatão, que tem acúmulo de lixo e a prefeitura não faz dragagem.”

Nayara Fernandes também é moradora de Jaboatão dos Gurarapes, uma das regiões mais afetadas pelas chuvas em 2022 – Imagem: Arquivo Pessoal

Em 2022, a Rede Tumulto, coordenada por Yane Mendes, foi um dos coletivos que articulou doações de cestas básicas, produtos de higiene e colchões para auxiliar mais de 300 famílias. “Vimos poucas ações da gestão municipal e estadual. Fizeram apenas ações pontuais e filmaram bem para os comerciais”, denuncia.

Hoje, a Rede está trabalhando na atualização do banco de dados das centenas de famílias cadastradas, para saber sua situação atual e se acessaram algum auxílio do governo. “As chuvas já começaram e esse povo já deve estar bastante assustado.”

Prefeitura investe mais em propaganda do que em obras

Em 2022, Dani Portela era vereadora de Recife pelo PSOL, e criticou a postura da prefeitura. Hoje é deputada estadual de Pernambuco, e reafirma que os alagamentos e deslizamentos se repetem por falta de políticas públicas de prevenção.

Dani Portela era vereadora de Recife pelo PSOL, e hoje é deputada por Pernambuco – Imagem: Roberto Soares

A parlamentar informou que seu mandato enviou em fevereiro um ofício questionando as estratégias utilizadas para prevenção dessas tragédias, e em abril um Pedido de informação à gestão estadual com questionamentos acerca de medidas de prevenção. Mas, não obteve retorno.

“As ações previstas para prevenção e enfrentamento a catástrofes naturais previam para 2023 quase R$ 26 milhões. Porém, no portal da transparência, não temos disponível quanto foi gasto até o momento para execução”, destaca a deputada.

Para Larissa, a prefeitura investe mais em propaganda do que em obras estruturais, como saneamento básico, dragagem, habitação. Quanto ao governo do estado, observa que não há atenção ao racismo ambiental decorrente das chuvas.

Yane concorda.“A gestão deveria pensar na prevenção e não depois que as pessoas morrem. Eles sabem onde encontrar os coletivos, mas não querem contato com a gente”, critica. A coordenadora da Rede Tumulto conta que chegou a ser convidada para um desses comerciais realizados pela prefeitura sobre as grandes chuvas. Mas, pediu para ver o Plano de Contenção das chuvas antes, que não foi disponibilizado.

Yane Mendes é cineasta periférica e coordenadora da Rede Tumulto – Imagem: Rede Tumulto

Em Jaboatão, as coisas não são diferentes. “A gente não consegue manifestação da prefeitura. Não sei o que fazer para ser atendida pelo telefone da Secretaria de Saúde e pelo Controle de Vigilância Sanitária de Jaboatão dos Guararapes. Estamos jogados ao léu”, denuncia Nayara.

O mandato de Dani Portela disponibilizou um questionário para que a população indicasse se nas suas comunidades estava acontecendo alguma obra estruturante de prevenção aos impactos das chuvas. Das 79 respostas recebidas, afirma, 60 indicavam que não havia nenhuma obra sendo realizada.

Pernambuco precisa de mudança estrutural

Em 2022, cidades como Recife e Jaboatão dos Guararapes estavam entre as 20 com as piores notas do Ranking do Saneamento 2022. Este ano, o Recife conseguiu avançar cinco posições, mas Jaboatão segue entre as 20 piores desde 2014.

“É muito triste ver que ainda somos um grande engenho. Onde só o centro, a casa grande, tem atenção, enquanto as senzalas, os morros, são totalmente esquecidos”, desabafa Nayara.

De acordo com o Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento de 2021, apenas 30,8% dos pernambucanos têm acesso à coleta de esgoto. Dani Portela acredita que para enfrentar o problema é necessário fortalecer a Companhia Pernambucana de Saneamento – COMPESA.

“São problemas enfrentados por pessoas das Região Metropolitana ao Sertão de Pernambuco, em sua maioria negras, pobres e periféricas. A garantia deste direito representa uma estratégia de enfrentamento ao racismo ambiental”, defende.

Para Larissa, o avanço de Recife no ranking não passa do resultado do investimento em propaganda. “Usam estratégia de comunicação com a pretensão de envolver a população numa falsa participação política coletiva com intenção eleitoreira. O prefeito João Campos é herdeiro do legado do PSB, que está há mais de 20 anos colocando os pobres e negros na periferia da cidade, sem estrutura e relegadas à morte.”

A coordenadora do Blogueiras Negras aponta como exemplo o dinheiro investido em grandes construções, como o Cais José Estelita, e a especulação imobiliária. Para isso, explica, as gestões são compostas por nomes ligados à grandes empreiteiras, responsáveis pela gentrificação na cidade.

Nós por nós

Nayara lembra que, nos dias de maior aflição durante as chuvas, vizinhos, amigos e conhecidos perderam tudo, e as únicas doações que chegaram vieram dos próprios moradores. Foram nove dias sem água nem mesmo para tirar a lama das casas. “Foi um abandono do poder público. Dói dizer que o horizonte somos nós mesmos. A mudança está começando dentro das comunidades, como as cozinhas solidárias.”

Yane lembra que durante as campanhas de doação, os únicos com quem a Rede Tumulto pôde contar foram coletivos parceiros e lideranças comunitárias. “Foi um trabalho de várias mãos, pessoas que chegavam do seu trabalho mas tiravam horinha pra separar materiais doados. A gente não queria ter precisado fazer esse trabalho, ter visto os nossos impactados daquele jeito”, lamenta.

Para a ativista, o ideal seria que a expertise desses coletivos fosse utilizada junto à gestão, que tem “ferramentas, recursos e obrigação de fazer isso por nosso povo”.

Enquanto isso não acontece, a Rede pretende preparar antecipadamente uma campanha emergencial. “Esperamos que não haja tantas mortes, mas vamos nos preparar para o pior. Diferente da gestão, a gente entende que não tem tempo de ver as pessoas morrerem e não ter pensado nada antes”, finaliza.

O que diz a Prefeitura de Recife

Em nota enviada para a Afirmativa a Prefeitura diz que “avançou em políticas públicas e promoveu um grande conjunto de iniciativas de prevenção, ao longo desse período. A Ação Inverno 2023, pacote de serviços e  intervenções do município no enfrentamento às consequências climáticas, tem investido R$ 291 milhões em todas áreas da cidade com esse objetivo“. A Prefeitura menciona ainda programas como o auxilio emergencial e medidas de contenção de encostas.

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