Pesquisa mostra que mais de 40% dos jogadores negros já sofreram racismo, e especialistas explicam o atual aumento de denúncias

Para especialistas, foi criado um imaginário em torno dos estádios como espaço onde tudo é permitido, incluindo ofensas racistas, homofóbicas e misóginas, sem punições

Para especialistas, foi criado um imaginário em torno dos estádios como espaço onde tudo é permitido, incluindo ofensas racistas, homofóbicas e misóginas, sem punições

Por Andressa Franco

Imagem: Alexandre Brum

A partida entre Palmeiras e Boca Juniors pela Libertadores na noite da última quinta-feira (5) terminou em confusão na tribuna de imprensa do estádio Allianz Parque, em São Paulo (SP), por acusações de racismo. O time argentino eliminou o Palmeiras por 4×2 nos pênaltis, e torcedores do Verdão acusaram jornalistas argentinos de fazer gestos racistas durante a comemoração.

Segundo informações da ESPN, os acusados são os irmãos Christian e Sebastián Infanzón, da Radio AM, de La Plata. Diante da situação, os palmeirenses discutiram com a dupla e invadiram a tribuna para agredir os repórteres. A Polícia Militar foi acionada, e conduziu Christian imobilizado para o Juizado Especial Criminal, onde ele foi ouvido e liberado.

Jornalistas argentinos fizerm gestos racistas para torcedores palmeirenses no jogo que sacramentou a classificação do Boca Juniors e eliminação do Palmeiras no llianz Parque, em São Paulo (SP) em São Paulo – Imagem: Reprodução

Também na última semana, a Polícia Civil do Paraná começou a investigar um caso de racismo que aconteceu no Estádio Couto Pereira, em Curitiba, no último domingo (2). Dois torcedores do Coritiba imitaram um macaco em direção à torcida do Athletico, durante a partida da 25ª rodada do Campeonato Brasileiro.

Os seguranças que aparecem no vídeo que viralizou nas redes sociais não fizeram nada, mesmo com um dos agressores andando em direção a eles. A Delegacia Móvel de Atendimento ao Futebol e Eventos já solicitou os registros das imagens internas ao Coritiba para investigar o caso. 

Dois torcedores do Coritiba imitaram um macaco em direção à torcida do Athletico no tradicional clássico – Imagem: Reprodução

Casos como esses, noticiados quase na mesma frequência dos jogos de futebol, não são isolados. De acordo com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), 41% dos profissionais que atuam no Brasil, entre eles, jogadores, membros de comissão e arbitragem, já sofreram racismo durante o exercício de sua atividade. Os casos de discriminação incluem “piadas”, insultos e ataques, sendo que 53% ocorrem nos estádios, 31% nas redes sociais e 11% nas sedes ou centros de treinamentos.

Para Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, os números mostram que no Brasil o racismo é costumeiro, e a sociedade não vê problema em cometer esse crime. “Temos diversas leis para punir o racismo, mas não são suficientes. Mesmo com a equiparação de injúria racial ao racismo, dificilmente essas pessoas serão presas. A impunidade faz com que se sintam à vontade.”

Está acontecendo mais ou está sendo mais denunciado?

José Rezende é psicólogo clínico e esportivo, e acredita que não é possível precisar se tem se registrado uma maior ocorrência de atos de racismo em estádios, ou se estes estão finalmente sendo reconhecidos e denunciados. 

Isso porque, afirma, atos de racismo recreativo em estádios sempre existiram, assim como não é diferente em qualquer outro ambiente na sociedade. 

“Estamos falando mais sobre isso, logo, estão denunciando mais. Às vezes um comentário, ‘piada’, imitação, que alguns anos atrás o jogador ou a torcida deixaria passar, hoje não. Está sendo denunciado ao vivo.”

Para o psicólogo, com a ampliação do debate sobre racismo, os jogadores também têm tomado consciência da sua identidade racial, e reconhecido o problema em serem ofendidos por conta disso.

Um exemplo foram as declarações do ex-jogador Ronaldo Fenômeno no podcast Mano a Mano, do rapper Mano Brown. O atleta falou do arrependimento por declarações passadas relacionadas a questões raciais e às situações de racismo que sofreu durante sua carreira.

“O racismo sempre existiu no futebol. É um problema da sociedade. Nos jogos, me chamavam de macaco, brasileiro macaco”, disse o ex-jogador. 

Marcelo cita ainda dois casos que acredita serem emblemáticos para explicar a mudança de percepção do racismo nos estádios. O do ex-jogador Edinaldo Batista Libânio, conhecido como Grafite, que manifestou em entrevista que diversas vezes sofreu racismo dentro de campo, mas que não existiam ferramentas para denúncia e acolhimento. 

Marcelo Carvalho é diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol – Imagem: Joana Berwanger

E o do ex-jogador Paulo César Tinga em 2014, onde a torcida do Real Garcilaso-PER imitava um macaco toda vez que o volante pegava na bola em um jogo da Libertadores. A repercussão na mídia é outro ponto destacado pelo diretor do Observatório. 

“Ele diz que o que mais chamou atenção dele logo que saiu de campo, foi a imprensa ter perguntado sobre o caso de racismo. Das outras vezes, a imprensa questionava apenas sobre o jogo, como se o racismo não tivesse ocorrido”, relata Marcelo.

“O estádio é onde as pessoas vão pra extravasar”

Os atos racistas praticados nos estádios podem ser o reflexo do racismo presente na sociedade, mas será que apenas a certeza da impunidade explica a escolha desse ambiente como local para expressá-lo? 

“Quando estamos em competição, muitas vezes a emoção toma conta do corpo e o controle do que se fala é menor. Assim, as pessoas acabam dizendo o que realmente estão pensando. O que gera essas manifestações preconceituosos”, pontua José. O psicólogo lembra que se trata de uma questão cultural, também associada a outros preconceitos, como a xenofobia. “Quando times brasileiros enfrentam times de outros países da América Latina, há muitas manifestações racistas de torcidas argentinas, uruguaias, chilenas. Se torna midiático, e a pessoa não tem medo devido à impunidade.”

José Rezende é psicólogo clínico e esportivo – Imagem: Arquivo pessoal

As questões culturais remontam à infância e juventude de Marcelo. Aos 50 anos, ele lembra que foi criado com o imaginário de que o espaço do futebol e dos estádios eram o lugar para “extravasar todas as suas decepções.”

“Se você tivesse qualquer frustração na vida, ouvia: ‘vai lá no estádio, grita, xinga e você volta melhor.’ Dentro desse xingar, estava colocado todos os tipos de violência. Não só racismo, mas homofobia, machismo, violência contra o oponente. Isso no futebol durante muito tempo foi normalizado.”

Para se ter noção, a Copa do Mundo masculina de 2022 foi a primeira vez em 92 anos em que o Brasil teve um jogador usando a camisa com a numeração “24”. O número é um tabu, devido à uma associação homofóbica com o ‘veado’ no jogo do bicho. A decisão veio do primeiro presidente negro da CBF, Ednaldo Rodrigues, eleito em 2022, com a promessa de uma gestão pautada no fim da segregação e do preconceito.

Na Copa do Mundo feminina de 2023, uma jogadora da seleção espanhola, que levou a taça, foi beijada à força pelo presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales. Ele renunciou ao cargo após forte pressão das jogadoras espanholas, da FIFA e da repercussão na mídia. Mas em seu depoimento no tribunal nesta quarta-feira (4), manteve a defesa de que não tem porquê pedir desculpas e que o beijo foi consensual.

Educação antirracista e união de forças é o caminho

Desde a Copa do Mundo de 1994, os jogadores negros são maioria nas convocações da Seleção Brasileira. Mas não existe essa mesma representação nas posições de poder dentro do futebol. Da mesma forma que só em 2022 uma pessoa negra ocupou a cadeira da presidência da CBF, desde 1930, quando disputou sua primeira Copa do Mundo, a Seleção Brasileira foi dirigida apenas por dois técnicos negros. Tendência que se repete em torneios nacionais. 

No último dia 24 de setembro, os Ministérios da Igualdade Racial e o Ministério do Esporte assinaram com a CBF um protocolo de intenções para o combate ao racismo e promoção da igualdade racial no futebol. 

Na avaliação de Marcelo, o principal destaque da iniciativa é a união de forças. 

“Quando falamos de racismo no futebol, a maioria das pessoas direciona o olhar para a CBF. É preciso entender que a CBF não vai conseguir acabar com o racismo. Ela tem a possibilidade de punir através do Tribunal de Justiça. Mas é preciso essa união de forças para que as leis sejam cumpridas e para que quem cometeu o ato de racismo seja identificado e preso”, explica.

José concorda que as punições são necessárias, mas critica a falta de aplicação. Como o Código Disciplinar da FIFA aprovado em 2019. Segundo ele, os árbitros podem suspender um jogo devido a atos racistas, e até mesmo encerrar a partida e atribuir a derrota ao time infrator. “É ótima punição, mas que de fato não vem acontecendo na prática. Além disso, muita coisa pode ser feita pelos clubes”, aponta. 

Ainda assim, o psicólogo acredita que o melhor caminho é a conscientização através da educação antirracista, para que esses atos nem cheguem a acontecer. Ele defende que o próprio esporte pode e deve ser um espaço parceiro dessa conscientização. 

“Não vamos combater o racismo apenas com punição. É preciso promover diversidade nos espaços. É impossível que o futebol brasileiro continue sendo conduzido e gerido apenas por pessoas brancas. Esse grupo não vai ser capaz de promover ações efetivas de combate ao racismo”, reflete Marcelo. 

O diretor do Observatório ressalta ainda o papel do torcedor, que precisa ser mais ativo em casos de racismo. “Não pode acontecer como no jogo do Coritiba, por exemplo, com milhares de torcedores, e os seguranças pagos pelo clube observando e ninguém fazer nada. Nós torcedores precisamos tomar a atitude: descer, chamar a polícia, exigir que essa pessoa não volte ao estádio”, finaliza. 

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