Por Catiane Pereira
A possível adoção de uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) durante a COP30, em Belém, acende o alerta de organizações sociais sobre o risco de repressão e criminalização de movimentos populares. Especialista teme que a medida, caso seja implementada, abra espaço para abusos e violações de direitos, especialmente contra pessoas negras, indígenas e periféricas que vivem ou atuam na região amazônica.
O tema ganhou destaque após o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, afirmar em julho que o governo brasileiro deve recorrer à GLO para reforçar a segurança de chefes de Estado e autoridades internacionais que participarão da conferência climática, marcada para novembro deste ano. Durante conversa com jornalistas no Rio de Janeiro, Múcio antecipou que a atuação das Forças Armadas será ampliada no período do evento.
A COP30, principal conferência da ONU sobre mudanças climáticas, deve reunir cerca de 50 mil participantes de quase 200 países. O evento marca o encerramento do primeiro ciclo de avaliação do Acordo de Paris e é considerado estratégico para países em desenvolvimento na busca por financiamento climático.
Apesar do anúncio, não há informações oficiais sobre como será a eventual GLO em Belém, e o Ministério da Defesa não respondeu aos pedidos de esclarecimento da reportagem.
Histórico de GLOs e críticas a abusos
Nos últimos dez anos, o Brasil realizou 33 operações de Garantia da Lei e da Ordem, segundo dados do próprio Ministério da Defesa. Embora previstas em lei, as GLOs têm sido criticadas por abrirem brechas para atuações militares em funções de segurança pública, algo que especialistas consideram incompatível com o regime democrático.
Entre os casos mais graves está o de 2019, no Rio de Janeiro, quando o músico Evaldo Rosa dos Santos e o catador Luciano Macedo foram mortos por militares durante uma GLO. Oito integrantes do Exército foram condenados em 2024 pelas mortes.
Além disso, operações de GLO durante a chamada “pacificação” de favelas cariocas expuseram problemas estruturais, como a ausência de autorização para buscas domiciliares, a falta de preparo dos militares para ações civis e o alto número de violações em territórios majoritariamente negros e periféricos.
Entidades do Pará repudiam militarização
Para o advogado Marco Apolo, do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), a proposta de empregar militares durante a COP30 é indevida e inconstitucional. Ele explica que a GLO só pode ser decretada de forma excepcional e após o esgotamento dos mecanismos civis de segurança pública, o que, segundo ele, não se verifica no momento.
“Não há qualquer indício de ameaça à ordem pública que justifique uma GLO. O que há é preocupação com manifestações sociais e reivindicações legítimas. Isso não é ameaça — é exercício da democracia”, afirma o advogado.
Apolo lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a ADI 6457, limitou o uso da GLO, determinando que ela só pode ocorrer de forma subsidiária e sob controle dos demais poderes.
Segundo o advogado, a militarização de um evento que deveria ser participativo e plural ameaça o caráter democrático da conferência e pode levar à criminalização de movimentos sociais, lideranças negras, indígenas e de comunidades tradicionais.
“Nos preocupa o histórico de repressão a protestos na Amazônia e o racismo institucional presente em operações de segurança. A militarização tende a afastar os mais pobres dos espaços de decisão e visibilidade”, pontua.
Apolo cita episódios como o massacre de Eldorado dos Carajás, a repressão a movimentos quilombolas e o Ato Vidas Negras Importam, em 2021, como exemplos de como o uso da força estatal costuma atingir seletivamente populações negras e marginalizadas.
Entidades e organizações da Amazônia devem enviar nos próximos dias uma carta à presidência da COP30 e ao governo federal, pedindo que o evento ocorra sem repressão a manifestações e com ampla participação da sociedade civil. Uma frente jurídica de apoio a possíveis vítimas de violência ou criminalização durante a conferência também está sendo organizada.
Contexto
A lei complementar 97/1999 autoriza o emprego das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem, mas estabelece que o decreto deve ser de responsabilidade do presidente da República e apenas após o esgotamento dos instrumentos civis previstos no artigo 144 da Constituição Federal.
Na prática, especialistas alertam que o uso recorrente das GLOs, muitas vezes para fins políticos ou administrativos, fragiliza as instituições democráticas e amplia o risco de violações de direitos, especialmente em territórios onde a população negra e pobre é tratada como inimiga interna.
Com a COP30 marcada para ocorrer no coração da Amazônia, entidades e movimentos sociais cobram que o encontro seja um espaço de escuta e protagonismo dos povos tradicionais, e não de controle e silenciamento.