Por Andressa Franco
Entre 2022 e 2023, o Brasil teve uma redução de 2,3% na taxa de homicídio por 100 mil habitantes, o menor índice dos últimos 11 anos. O dado é um dos muitos divulgados pelo Atlas da Violência 2025, publicado na última semana pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Na avaliação do relatório, um fenômeno que explica essa queda é a expansão da chamada “revolução invisível” da segurança pública. O documento explica que essa “revolução” consiste no abandono da política baseada estritamente no policiamento ostensivo e no uso da força, e na adoção de um conjunto de ações que visam melhorar a efetividade da segurança pública. As estratégias incluem qualificação do trabalho policial orientado pela inteligência e programas multissetoriais de prevenção da violência.
Interpretação que Dudu Ribeiro, co-fundador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e integrante da Rede de Observatórios da Segurança, vê com estranheza.
“Não há, em hipótese alguma, nenhum tipo de revolução acontecendo na segurança pública no campo da prevenção e utilização de tecnologia. O que tem sido feito é a aquisição desorganizada de tecnologias de vigilância, muitas vezes sem motivos e sem interlocução com a sociedade civil”, aponta.

Para ele, os dados do Atlas apresentam apenas a manutenção de uma lógica de segurança pública baseada na ocupação de territórios negros e periféricos, e que favorece uma ideia de guerra às drogas, que se materializa como guerra a pessoas, territórios e culturas. “Mesmo a redução [de homicídios] observada não está nem perto de ser um processo seguro de que estamos mudando a segurança pública no Brasil.”
O argumento de Dudu está refletido no número de pessoas assassinadas em 2023: 45.747, das quais 35.531, ou seja, 77%, eram negras.

Bahia lidera feminicídios e mortes de jovens negros no Brasil
Em números absolutos, a Bahia liderou o índice de homicídios no Brasil em 2023. Foram 6.616 óbitos registrados, dos quais 6.088 eram de pessoas negras. Para se ter uma ideia, o segundo maior índice, do Rio de Janeiro, foi de 4.292 homicídios. A Bahia também está no topo do ranking de morte entre jovens em 2023, com a segunda maior taxa. São números que reforçam o que os movimentos sociais vêm denunciando há décadas como genocídio da juventude negra.

Quadro definido por Dudu como o exemplo mais nítido da falência, não de uma gestão, mas de um modelo de segurança pública. Modelo esse baseado numa perspectiva militarista e, por isso, no confronto do inimigo e na ocupação de territórios, ao invés da proteção da vida e da cidadania.
“Na Bahia, a mudança da geopolítica das organizações ligadas ao tráfico de drogas e armas se soma à uma polícia altamente letal e à ausência de planejamento da segurança pública para proteção das nossas comunidades”, avalia.
As estatísticas alarmantes do estado não param por aí. O estudo revelou ainda que o número de homicídios femininos no Brasil teve crescimento de 2,5%, a média chegou a 10 mulheres mortas por dia no país, sendo que 68,2% das vítimas eram negras. No Nordeste, a Bahia é o estado mais violento para as mulheres: foram 463 vítimas fatais, representando um crescimento de 12,7% em relação a 2022.
Amanda Oliveira, técnica nos projetos de enfrentamento à violência contra as mulheres do Odara – Instituto da Mulher Negra, lembra que não são apenas números, mas histórias, sonhos e famílias. “As mulheres negras tiveram seus corpos historicamente vulnerabilizados e violentados na sociedade brasileira. A gente alia esse aumento nas taxas de feminicídio com as ausências do Estado, são muitas.”

Entre as quais, Amanda destaca a não garantia de direitos básicos para as mulheres negras. Além de um Estado que não tem a agenda da violência contra as mulheres e do feminicídio como política prioritária nos níveis municipais, estaduais e federal, nem investe de forma adequada em políticas de proteção, assistência social e acesso à justiça. “Nós temos um Estado que falha e fecha os olhos para a realidade de insegurança que as mulheres e principalmente as mulheres negras têm vivido nesse país.”
PEC da Segurança Pública mantém a lógica do confronto
No início de abril, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, apresentou a PEC da Segurança Pública ao presidente e líderes da Câmara dos Deputados, depois de vários meses em que o projeto ficou sob análise da Casa Civil. Trata-se do primeiro passo no sentido de estruturar constitucionalmente o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que foi instituído por uma lei de 2018.
Vale ressaltar que a segurança pública era o único direito social, apontado no artigo 6º da Constituição Federal, a não possuir um marco institucional que permitisse a integração e as responsabilizações federativas.
Embora seja uma iniciativa importante, Dudu ressalta que seu primeiro grande erro foi ter sido apresentada a partir de uma ideia de que é necessário reforçar a guerra para garantir a segurança no Brasil.
“Não há um discurso de pacificação do país. A PEC aponta o caminho de que é necessário que o governo coordene a guerra, e esse é o maior problema. A constitucionalização do SUSP pode gerar processos positivos, mas precisa liderar o país e coordenar as ações para a produção da paz e não para o reforço da guerra”, pondera.
Entre os pontos que podem ser positivos com o avanço da PEC, o ativista elenca a padronização dos dados em segurança pública para favorecer as análises e subsidiar políticas públicas, não estratégias de guerra.
Mas ainda falta muito para que se vejam impactos dessa PEC no país. O próprio Atlas da Violência detalha que o percurso passa por debates no Congresso, e estruturação da arquitetura e do modelo de governança do Sistema.
Outra preocupação do levantamento, é que a proposição atual da PEC só considera gastos obrigatórios, sem especificar exatamente o direcionamento desses gastos e se eles gerarão impactos “ou apenas servirão para reproduzir um modelo inercial de mais do mesmo.”