Por Mario Jorge *
Os impactos sociais decorrentes da pandemia do Covid-19 já atingem os territórios tradicionais quilombolas do Recôncavo Baiano. Apesar de não ter sido registrado, até o momento, nenhum caso suspeito de coronavírus nestas comunidades, a crise torna ainda mais vulnerável estas populações historicamente desassistidas do acesso integral às políticas públicas. Além da ameaça que o vírus representa para as pessoas mais velhas, guardiãs de ensinamentos ancestrais, a situação de vulnerabilidade social e a impossibilidade de comercializar a produção representam um sério problema.
De acordo com Ananias Viana, coordenador do Conselho Quilombola do Vale do Iguape, entidade composta por 14 comunidades quilombolas da região de Cachoeira (Ba), a principal preocupação, no momento, é proteger as pessoas mais vulneráveis e garantir a segurança alimentar da população. “Aqui nos quilombos de nossa região temos o mar, que chamamos de supermercado de Deus, onde algumas pessoas conseguem tirar seu sustento, mas temos comunidades que ficam mais distantes onde várias pessoas já estão passando fome”, revela.
A liderança quilombola Mara da Ponte Silva, da Articulação de Mulheres Negras no Quilombo Engenho da Ponte, também na região do Iguape, no município de Cachoeira, afirma que apesar do isolamento social ser considerado a principal forma de prevenção, no contexto do quilombo, a medida é complexa e tem provocado problemas que afetam às famílias, principalmente às mulheres negras.
“A situação aqui é gritante, a gente sabe que no quilombo é a mulher que está na linha de frente, em todos os sentidos. É a mulher que está no terreiro, que pesca, que produz o azeite, que planta e que escoa [a produção]. É a mulher que tem de buscar condições de dignidade para o filho estudar. Como dizer a esta mulher pra não ir à maré e ficar em casa?”, questiona Mara.
Sem ação direta dos órgãos governamentais voltada para as comunidades tradicionais, a Articulação de Mulheres Negras tem se organizado para reunir doações de gêneros alimentícios e materiais de limpeza. Segundo Mara, já foram distribuídas 70 cestas básicas para mulheres do Vale do Iguape, porém, a quantidade está longe de ser suficiente. Neste sentido, foi lançada uma rifa online, para arrecadar recursos, tendo como prêmio uma vivência na comunidade após a pandemia. Também foi adotada uma estratégia interna de colaboração, em que “uma mulher ajuda a outra, repartindo o que consegue com àquelas que mais precisam”, disse Mara.
Até o momento, o único auxílio disponibilizado pelo Governo Federal é a renda básica emergencial, porém o acesso à internet ainda não é universalizado nestas comunidades. Muitas pessoas precisam se deslocar ao centro da cidade para se cadastrarem em locais de atendimento disponibilizados pela Prefeitura.
Outra preocupação das lideranças comunitárias é o acesso de não moradores aos territórios, aumentando, assim, o risco de contaminação. Sem ação governamental efetiva que disponibilize máscaras de proteção, álcool em gel 70% e sem a instalação de barreiras sanitárias para monitorar a origem e sintomas de quem chega, fica a sensação de insegurança. As lideranças têm se esforçado para que os comunitários fiquem em casa e para evitar a presença de visitantes. “Além de todas as medidas recomendadas pelas autoridades de saúde, a principal medida, agora, é não deixar pessoas de fora chegar às comunidades, seria um risco muito grande”, declarou Ananias Viana.
Para Mara da Ponte o momento requer medidas rigorosas para proteger a vida do povo quilombola. Na opinião dela, a entrada do novo coronavírus nas comunidades pode representar um verdadeiro genocídio, risco principalmente para os idosos, em grande parte, acometidos por comorbidades como diabetes e hipertensão. “Já passamos por isso numa grande epidemia em 1930 onde apenas 20% do Quilombo Engenho da Ponte sobreviveu, não podemos passar por isso de novo”, concluiu.
Segundo Mara, relatos de antigos moradores narram que no início do século XX as comunidades do Vale do Iguape teriam sido assoladas por diversas epidemias, como malária, peste bubônica, varíola, dentre outras, ocasionando a morte de muitas pessoas. Um dos surtos mais fortes aconteceu durante as décadas de 1930, ocasião que a comunidade do Engenho da ponte se reuniu na busca da extirpação da doença fazendo promessa a São Roque. A devoção deu início às esmolas cantadas em favor do santo católico, cuja correspondência nos cultos afros brasileiros diz respeito à Obaluaê, também reverenciado pela comunidade.
Vale do Iguape
O Vale do Iguape, ou Bacia do Iguape, corresponde a uma área rural da cidade de Cachoeira, cerca de 40 km da sede da cidade, onde se encontram pequenas comunidades, que juntas integram um complexo de remanescentes quilombolas. A região destaca-se pela sua multiplicidade cultural, com manifestações e práticas religiosas que caracterizam a identidade do território. As comunidades apresentam um passado histórico de luta pela sobrevivência diante das agruras advindas da escravização, na qual subjugou as populações negras no Recôncavo da Bahia. A fundação da Freguesia de São Tiago do Iguape é uma das mais antigas da Bahia, datando de 1608.
A formação destas comunidades remete a formação dos engenhos de cana-de-açucar – a região possuía 22 engenhos onde atualmente concentram-se as comunidades – e a ocupação do território enquanto refúgio da população negra, já que findada a escravização, os indivíduos vinculados às terras em meio às demandas consequentes da escravidão não tendo para onde ir, continuaram morando nos Engenhos.
Segundo a Fundação Palmares, a Bacia do Iguape tem 17 comunidades reconhecidas como Remanescente de Quilombo: Caibongo, Calolé, Embiara, Tombo, Kalembá, Campina, Dendê, Imbiara de Cima, Engenho da Ponte, Engenho da Praia, Engenho da Vitória, Engenho Novo, Kaônge, Opalma, Palmeira, Santiago do Iguape, São Francisco do Paraguaçu. As comunidades são constituídas por pescadores e pescadoras artesanais, marisqueiras, pequenos e pequenas agricultores, comerciantes locais e possui uma população estimada em sete mil habitantes.
Ajude Mulheres Quilombolas do Iguape a resistirem a pandemia do Coronavírus. Assine a rifa da Articulação de Mulheres Negras no Quilombo Engenho da Ponte clicando aqui https://www.rifatech.com/app/317420002.xhtml
* Cria de Cachoeira, no Recôncavo, jornalista antirracista formado pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Mestrando em Comunicação e pesquisador das imbricações entre mídia e juventude negra. Radiojornalista e ativista dos direitos humanos.