Por Andressa Franco, Karla Souza e Patrícia Rosa
Desde 24 de abril, o Rio Grande do Sul enfrenta a maior catástrofe ambiental já registrada na região, uma das maiores do país no século XXI. Segundo pesquisa do World Weather Attribution (WWA), divulgada no último dia 03 de maio, o aquecimento global gerado pelas mudanças climáticas dobrou a probabilidade de chuvas no estado. A análise também aponta que as regiões desprotegidas, normalmente habitadas por populações mais pobres, enfrentam riscos mais elevados de inundações.
No mês de maio, dados do Observatório das Metrópoles e do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), já haviam comprovado que as populações negras, quilombolas e indígenas estão entre as mais afetadas pelo evento extremo. O Ministério da Igualdade Racial também já havia informado que das 147 comunidades quilombolas, distribuídas por 68 municípios gaúchos, 136 encontram-se em estado de calamidade ou emergência. Ou seja, 97% dos quilombos do estado foram atingidos de alguma forma pelas enchentes.
Até a última quarta-feira (5), o estado contabilizava 172 mortes, 41 desaparecidos, mais de 600 mil desabrigados e 4,1 milhões de afetados.
Racismo ambiental e especulação imobiliária andam juntos no RS
O racismo ambiental é uma expressão que se refere a como os impactos e tragédias ambientais atingem implacavelmente a população vulnerabilizada e negra.
Dados da Agência Brasil, apoiados por mapas do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles, confirmam uma desigualdade econômica e racial entre os afetados. As áreas mais alagadas, em sua maioria, eram ocupadas pelos mais pobres, impactando desproporcionalmente a população negra, que representa 21,19% dos habitantes do estado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE-2022).
André Augustin, pesquisador do Núcleo Porto Alegre, ressaltou que, embora algumas áreas mais ricas também tenham sido afetadas, ainda assim, o impacto não foi igual. Segundo ele, quase todo o Quarto Distrito, uma grande região da zona norte da capital gaúcha, ficou debaixo d’água. Esta área, com mais de cem anos de ocupação, teve recentemente suas leis urbanísticas alteradas para permitir mais construções e favorecer o mercado imobiliário.
“As populações negras no Brasil são removidas de seus territórios pela especulação imobiliária, porque as classes média e alta querem ocupar pelas vistas privilegiadas ou coisas do tipo. Assim, essa população é removida e estabelecida em lugares vulneráveis”, explica Nina Fola, multiartista, socióloga e que pesquisa racismo. A ativista encara sem surpresas o fato das regiões mais afetadas terem sua população majoritariamente negra, feminina e pobre. “São os espaços em que o poder público não chega.”
Para ela, o que diferencia a catástrofe atual de Porto Alegre, é o fato de ter invadido o centro histórico e bairros ribeirinhos, “onde a classe média, que antes não morava ali, tomou conta”. É por isso mesmo que a ativista, porto-alegrense de 51 anos e integrante do Coletivo Atinúké, considera a comoção social racista. “O Brasil vem sofrendo grandes eventos de crise climática na Bahia, Maranhão, Rio de Janeiro, onde a maioria da população é negra.”
As consequências da especulação imobiliária apresentada por Nina, também foram notadas por Simone Cruz, ativista e psicóloga de 51 anos. Inclusive a partir de falas de autoridades como o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), que culpou o “crescimento desordenado das cidades” pela tragédia. “Essas pessoas que estão acolhidas […] nunca deveriam morar onde moram”, disse.
O sofrimento dessas vítimas foi presenciado por Simone e demais companheiras da Associação Cultural Mulheres Negras – ACEMUN, que passaram a acompanhar abrigos de Porto Alegre. As voluntárias trabalham diariamente com organização e distribuição de roupas, fornecimento de alimentação, cadastros nos abrigos e articulação para subsistência dos assistidos.
“É fato que olhando os maiores abrigos, é possível verificar muito essa população [negra e pobre]”. Discriminações contra mulheres imigrantes, principalmente haitianas e venezuelanas, também chegaram ao conhecimento da Associação. “Acho que essa tragédia vai aprofundar o debate do racismo ambiental. Porque até então não estava na agenda como já vem sendo discutida há muitos anos em outras regiões do país”, pondera Simone.
A deputada federal Daiana Santos Ajaka (PCdoB), concorda. Para ela, o racismo ambiental sempre esteve perceptível aos olhos da população, mas não havia abertura para o debate. Ela observa que o descaso do poder público com os territórios das populações negras e indígenas no estado não é novidade.
“Desde a retirada das posses de terra dessas comunidades, passando pelas perseguições sofridas pelos quilombos urbanos, até a criação dos guetos nas grandes cidades, onde a especulação imobiliária retira a população de seu local de habitação de maneira bruta para vender”, critica.
A demora na instalação das bombas de drenagem no Sarandi, Humaitá e Vila Farrapos, bairros habitados por grande parcela de pessoas negras, comparado com o atendimento dado ao bairro Menino Deus, que foi menos afetado e teve seus problemas solucionados rapidamente, é um exemplo apontado pela parlamentar.
Condomínio de luxo despeja água na comunidade Passo dos Negros
Um dos casos de racismo ambiental de maior repercussão na tragédia gaúcha foi o sofrido pela comunidade Passo dos Negros, em Pelotas. O condomínio de luxo Lagos de São Gonçalo instalou um duto clandestino para drenar a água de três lagos internos e despejá-la há 80 metros de Passo dos Negros, um bairro vizinho historicamente negro e socialmente vulnerável, já fortemente impactado pelas enchentes.
Paula Mascarenhas, prefeita da cidade, enviou técnicos do Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas (SANEP) para verificar a situação. A bomba e o duto foram removidos cerca de seis horas após serem descobertos, em 16 de maio.
A deputada Daiana Santos apresentou uma denúncia ao Ministério Público do Estado contra o condomínio, solicitando que seja enquadrado nas leis de crimes ambientais e de parcelamento do solo urbano. Ela solicitou a instauração de um inquérito civil para apurar o caso e responsabilizar os envolvidos, além de solicitar a reparação dos danos ambientais e sociais causados à comunidade. Para ela, o caso explica didaticamente o que é racismo ambiental.
Juliana Soares, de 39 anos, é quilombola, ativista e moradora de São Lourenço do Sul, uma das cidades afetadas pela cheia da Lagoa dos Patos. Ela não ficou surpresa com o caso, pelo contrário, acredita que essa é mais uma história que se torna pública, diante de tantas outras. “As pessoas se sentem autorizadas a fazer isso. O Estado é organizado de forma que autoriza essas pessoas, seja de maneira simbólica ou de maneira legal. Agora o racismo ambiental está vindo à tona, a partir dessas tragédias.”
Prefeitura porto-alegrense despeja entulho ao lado de Sambódromo
Outro caso que escancara o racismo ambiental na tragédia tem como protagonista a prefeitura da capital gaúcha, que começou a despejar entulho no terreno ao lado do Sambódromo Complexo Cultural de Porto Seco durante a última semana de maio. O local também está sendo considerado para abrigar moradias temporárias para os atingidos pelas enchentes. “Esta é a forma que eles enxergam a população carente, a população que mais precisa. Para eles tanto faz, local de moradia ou lixão, é tudo igual”, afirmou o sambista Cléber Soares, ex-dirigente da Imperatriz Leopoldina.
O Sambódromo fica localizado na zona Norte de Porto Alegre, uma região historicamente periférica e pobre. O próprio deslocamento do Sambódromo para a área foi visto por muitos como uma “limpeza do centro”, transferindo o Carnaval para Porto Seco.
Usar o Complexo Cultural do Porto Seco como depósito de entulho e possível área para moradias temporárias foi uma decisão da prefeitura e expõe ainda mais os moradores da região a riscos sanitários. Centenas de caminhões estão descartando resíduos no local, o que representa um perigo tanto para os moradores quanto para os trabalhadores, que operam sem Equipamentos de Proteção Individual (EPI), de acordo com a denúncia da deputada Daiana Santos.
Não há reconstrução possível sem considerar o racismo ambiental
Para Juliana Soares, não é possível falar em reconstrução do estado, sem falar na questão racial. A quilombola é assessora de projetos da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), que atua com comunidades quilombolas da região.
“O Estado precisa ouvir esses povos. São muitos desafios pela frente, e o principal agora é fazer a disputa pelos recursos, fazendo com que os planejamentos levem em consideração a presença desses povos, e que o recurso chegue na ponta”, alerta.
Simone Cruz não está muito otimista com o cenário de reconstrução que tem sido propagado. “O discurso está muito voltado para indústrias, comércio, empresários, e focada no interior do Estado, onde o sofrimento não é menor, mas é de populações de origem alemã e italiana.”
Para Daiana Santos Ajaka, não há como pensar em uma reconstrução sem considerar a existência do racismo ambiental na agenda dos governantes. “Não adianta essa discussão ser feita no âmbito social e não ser discutida com clareza na Câmara Federal, nas agendas do governo do estado e das prefeituras. O desafio será gigantesco.”